27 de novembro de 2012

FAGNER: COMO SE PERDER PELO CAMINHO

Correu, na década de setenta, notícia de que Roberto Carlos, não satisfeito com os rumos que sua carreira estava, então, tomando, pediu a Fagner, o grande astro fulgurante da MPB da época, auxílio para que desse uma sacudida em seu trabalho.
Não sei se isso foi verdade, embora tenha lido em jornais daquele tempo.
E fiquei maravilhado com a possibilidade de um jovem compositor cearense, que chegou ao sul cheio de ideias e belíssimas canções, acentuado por um jeito todo próprio de “dizer” as letras, entre o choro e o lamento nordestino, auxiliar o já rei RC.
Eu, que tivera grande apreço por Roberto desde o início, nas rádios de sua Cachoeiro do Itapemirim natal, começava a não entender a guinada que ele dera em seu repertório. De início, flertando com a rebeldia da juventude de então, no movimento cultural nascido do rock inglês e norte-americano, que culminou com a criação da Jovem Guarda, Roberto, em final dos sessenta, início dos setenta, passou a cantar para coroas. Isto é, trocou as músicas descontraídas, irônicas e jovens, por canções que falavam de um jeito convencional do amor, bem ao gosto de uma faixa etária mais velha – uma geração posterior à minha, no mínimo. Até mesmo a roupagem de suas melodias ganhou orquestração convencional, sepultando de vez o grupo que o acompanhava, o RC-7.
À época, senti isto como um golpe de mercado: ele passou a fazer música para quem tivesse dinheiro para comprar.
Hoje ele é o que é, embora eu ache seu parceiro de sempre, Erasmo Carlos, muito melhor, por ter mantido a pegada que os consagrara. Por incrível que pareça – ele já não é mais menino –, Erasmo fez dois bons discos recentemente, Rock ‘n Roll (2009) e Sexo (2011), sobretudo o primeiro, talvez o melhor de sua longa carreira.
Pois muito bem.
Alguns anos depois, quem também deu guinada semelhante foi Fagner, que passou a cantar canções alheias, de duvidoso gosto para sua bagagem anterior, o que o levou mesmo a desaparecer quase que por completo da mídia.
Fagner podia muito mais pelo que já nos tinha mostrado, contudo foi pela linha fácil da busca do sucesso popular. Não que isto necessariamente seja ruim em si, mas cobra seu preço. E lá se foi a qualidade de seus discos iniciais.
Só que Fagner não tem, nem de longe, a quase burra unanimidade de Roberto Carlos, como afirmava Nelson Rodrigues a respeito da unanimidade. Roberto vem-se repetindo enfadonhamente, anos a fio, e seus fãs mantêm-se fieis e em grande número.
Há pouco, postei para meu sobrinho-neto Lucas uma velha canção de Fagner, para que ele o conhecesse, uma vez que, para os da sua idade – dezoito anos –, Fagner se tornou um “chato”. Quer dizer, ele passou a falar uma linguagem musical que não mais interessa a esses jovens.
Estou reouvindo, no momento em que escrevo estas bem traçadas, os dois primeiros discos longa duração de Fagner: Manera Fru-Fru manera (1973) e Ave norturna (1975), duas obras-primas da música popular brasileira. Ele continuou ainda fazendo boa música por mais alguns discos, até que resolveu também se transformar musicalmente.
Fagner soube, como nenhum outro de sua geração, musicar poemas de nomes consagrados da literatura de língua portuguesa, inclusive pagando o preço caro de fazer de início, sem autorização de herdeiros, música sobre poemas de Cecília Meireles.
Lucas ouviu com atenção a canção que lhe enviei – Astro vagabundo – e entendeu esta minha velha admiração pelo cearense, de quem ainda costumo comprar CDs, na esperança de que ele, um dia, volte à velha forma, como Erasmo.
E, caso você que me dá o prazer da leitura dessas considerações achar o mesmo que meu sobrinho-neto Lucas, recomendo ouvir, por exemplo, Traduzir-se*, belo poema de Ferreira Gullar que ele musicou e gravou no disco homônimo, de 1980, cujo texto está aí abaixo:
Uma parte de mim é todo mundo
Outra parte é ninguém, fundo sem fundo

Uma parte de mim é multidão
Outra parte estranheza e solidão

Uma parte de mim pesa, pondera
Outra parte delira

Uma parte de mim almoça e janta
Outra parte se espanta

Uma parte de mim é permanente
Outra parte se sabe de repente

Uma parte de mim é só vertigem
Outra parte linguagem

Traduzir uma parte na outra parte
Que é uma questão de vida e morte
Será arte?

Capa do disco Traduzir-se (em www.fagner.com.br).


(*Copie o endereço a seguir, para ouvir: http://www.youtube.com/watch?v=IF0UFCuypQc).

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