30 de julho de 2012

REGISTRO ECONÔMICO-SENTIMENTAL DAS ATIVIDADES LABORATIVAS DA VILA DE CARABUÇU AO TEMPO DA MINHA MENINICE E ADOLESCÊNCIA, COM ACHEGAS PESSOAIS NEM SEMPRE PERTINENTES (PARTE II)

Vamos, então, à segunda e última parte desses registros econômicos e sentimentais sobre a minha vilazinha, à época da minha meninice e adolescência.
Também duas eram as padarias: a do Chico Furtado e a do Celestino Amil, na Coreia, que, com a ida do primeiro para Bom Jesus, adquiriu o ponto comercial dele, mais bem localizado.
Habbib Kator El-Kik, um árabe de pele trigueira, tinha um laticínio soturno. Quando brincávamos com seu filho, os labirintos do estabelecimento serviam de ruas escuras e mal cheirosas às nossas fantasias policialescas.
Outro laticínio, o do libanês Libelton Boechat, muito mais bem montado, era, de fato, uma pequena indústria, em que se processava leite e se produzia manteiga de excelente qualidade, a Manteiga Betão, acondicionada em vistosas latas estampadas.
Quatro eram as barbearias: a do Sebastiãozinho, aonde meu pai mandava a mim e ao meu irmão cortar cabelo topetinho - aquele igual ao do Cascão; a do Nego Souza; a do Moreninho, mais bem montada, para onde fui mandado aprender o ofício de barbeiro, e a do Adolfo, desafeto de meu pai, por conta de um negócio de compra e venda de casa. Papai, mais do que estressado com as trapalhadas do Adolfo, resolveu dar uns tiros nele, sendo contido por meu tio-avô João Pinto, que lhe fez ver a besteira que iria fazer com seu gesto.
Certa época, apareceu por lá uma família, que instalou uma lavanderia. Como era de se esperar em lugar tão pequeno, o negócio não prosperou. Como também ocorreu com a padaria do João* Gonçalves, um homem cheio de filhos - moços e moças -, que não se demorou na vila.
Isaías Souza e China eram alfaiates, cada um com sua alfaiataria. China (Otoniel Bilac) era um gozador, que vivia de caçoar dos outros. Isaías, mais sério, tinha ajudantes: Escurinho e Carlinhos Baratão. Por vezes, ia a esses lugares para ouvir histórias e casos engraçados.
Uma única oficina de relojoaria atendia a todos os relógios da vila e funcionava na casa do Alcides Andrade, com hora certa.
Três cocheiras (veja postagem) serviam aos diversos cavaleiros que demandavam a Rua, como chamavam a vila os moradores dos arredores: a do Jair Passarelo, a do Memeco e a do Juca Teixeira, localizada na Coreia.
Sapateiros estabelecidos eram o Waldemar, o Messias e o Filhinho Gregório. O pai deste, João Gregório era especialista em garrafadas sanativas para diversos males. Messias, pobre sapateiro remendão, tocava um garboso trombone de vara na Lira Operária Bonjesuense que, segundo as más línguas, era desprovido de som, por determinação do maestro, para a harmonia geral da Furiosa. Waldemar, entre uma meia-sola e outra, puxava terços e ladainhas na capela de Santo Antônio.
Havia também serralherias: a do Heitor Barroso era uma mini-indústria, com várias máquinas modernas e diversos funcionários; Aurílio, Jeremias e Mané Gibaita tinham oficinas mais simples, com foles tradicionais tocando as forjas. Mané Gibaita também era mecânico de automóveis.
Zé Carola e Bebeco trabalhavam com madeiras em suas marcenarias. Bebeco (Américo) era mais refinado; Zé Carola, mais rústico. Havia uma serraria, cujo dono não sei quem era (meu pai disse que pertencia a um tal Vitalino), com um grande pau-d'alho no meio, onde, nas horas de ócio, os meninos iam brincar e, às vezes, acabavam por quebrar o braço.
Cuidavam dos dentes da população, na função de dentistas práticos, o Dirceu Oliveira, irmão do Rossini, com consultório bem instalado, e o Alcides Dentista, que atendia o povo mais simples. As brocas eram tocadas a pedal e, comumente, ouviam-se gritos lancinantes de um e outro cliente mais sensível. Alcides deu a seu filho o nome de Stalin, que chamávamos de Estalim. A pronúncia dele para o nome do menino era Essetalim, com a última sílaba forte. Talvez ele não tenha entendido direito nem o nome, nem o papel histórico do ditador soviético.
O único meio de hospedagem na vila era a Pensão Liberdade, de dona Judith e João Coleto, que também exercia a função de técnico do glorioso Liberdade Esporte Clube.
Como meios de transporte, a vila dispunha de uma linha de ônibus que fazia a ligação com a sede do município, Bom Jesus do Itabapoana, via Apiacá e Usina Santa Isabel, e pertencia, inicialmente, a Alair e, depois, a Ivo Basílio. Táxi era o do libanês Amim Antônio. Minha avó jamais ia com o Amim, porque dizia que "não podia andar em carro fechado", pois passava mal. Automóvel ainda era uma palavra um tanto desconhecida entre nós, por aquela época.
 Já os transportes de cargas se faziam através das carroças de burro do Alcino Oliveira, do Idolino Mestre, irmão do João Mestre, e do Joanico. Havia alguns caminhões, que trabalhavam principalmente à época do corte da cana de açúcar: o do Walter e do Zé Figueiredo, meus primos, o do Zé Galo, o do Mansur (que às vezes deixava o bar, para fazer isso), o do tio Inácio - um pequeno caminhão Gigante da Chevrolet - e o de um hominho baixinho, mentiroso que só ele, que foi morar na vila por uns tempos e depois de lá se mudou, de cujo nome não me lembro mais.
Como serviços públicos, havia um posto de saúde, onde meu tio Cícero, escalavrava a pele dos braços da população, com uma pena de caneta tinteiro cortada na ponta, para incutir, assoprando por um canudinho, a dose de vacina que nos livrasse de algumas doenças epidêmicas.
Também um posto de atendimento bancário do antigo Banco do Estado do Rio de Janeiro, com quatro ou cinco funcionários. E um posto dos correios, que funcionava num dos cômodos da casa da Laura, casada com meu primo José Figueiredo.
O cartório de registro civil pertencia inicialmente ao Nico Fragoso, um homem culto e famoso por ser, naquele tempo, agnóstico e anticlerical. Não obstante isso, fazia simpatias para tirar verrugas. Ele mesmo acabou com uma verruga que me apareceu, apenas com meus dados de data e horário de nascimento fornecidos por meu pai. Como que por encanto, a verruga que me nascera na parte interna direita do pai de todos da mão direita sumiu. Até hoje não sei como isso se deu. Também não acredito em nada disto. Posteriormente chegou à vila, para substituí-lo, Aldemiro Oliveira, que lá ficou até a aposentadoria, eu já morando em Niterói.
Um belo colégio que ministrava as séries do antigo Curso Primário, em seis anos, era inicialmente uma Escola Típica Rural. Passou por obras de ampliação, ganhando mais três salas de aula e um auditório, e passou a se chamar Grupo Escolar Marcílio Dias, que está lá até hoje. Quando eu tinha meus quatorze anos, a Campanha Nacional de Escolas da Comunidade, antiga CNEG - Campanha Nacional de Escolas Gratuitas -, criou o curso ginasial, começando com a primeira série, no ano de 1961.
Também a vila passou a ser atendida por serviço de água e esgoto na década de 50. Lembro-me do trabalho de construção de um imenso reservatório de águas num morro próximo e da instalação de manilhas e canos e do registro em cada uma das casas. A este registro chamávamos "pena d'água". A inauguração do serviço foi com um grande churrasco para a população.
Como lazer e entretenimento destacava-se o serviço de alto-falantes do Narck Pontes que, duas vezes ao dia, enchia os ares da vila com sua programação musical, entremeada de propaganda do comércio local. À noite, sobretudo nos fins de semana, quando as pessoas iam passear na praça, era comum ocorrerem dedicatórias musicais: “Alguém oferece a alguém – e esse alguém sabe quem –, como prova de muito amor e carinho, o samba-canção de Enzo de Almeida Passos e Adelino Moreira, na voz de Nelson Gonçalves, Negue”. Na época, dizia-se o estilo musical, autores e intérpretes. Às vezes, até mesmo a gravadora: "Numa gravação RCA Victor...".
Eu mesmo, já franguinho emplumado, como não recebesse dedicatória de ninguém, armei uma fake: eu mesmo me dediquei e deixei programada, para quinze minutos depois, a retribuição: “Alguém oferece ao Saint-Clair como prova de admiração: Guarânia da Lua Nova, de Luiz Vieira, na voz de Agostinho dos Santos.”, que me retribuí com “Paz do Meu Amor, de Luís Vieira, na interpretação do autor”. Naquela noite de sábado passeei soberbo na rua e na pracinha. E foi só: ninguém mais me ofereceu música nenhuma. Então resolvi economizar os dois cruzeiros de cada dedicatória, para chupar picolé ou tomar guaraná. Seria mais proveitoso!
Cinema era outra diversão um tanto sazonal. Por algumas vezes, ficávamos órfãos da "maior diversão", como se dizia à época. Até que Zezete Andrade, irmão de Elói e aficionado por cinema, comprou dois projetores de 16mm e, com frequência, exibia filmes no salão de bailes do Liberdade Esporte Clube. Algumas pessoas levavam de casa suas cadeiras, a fim de que tivessem um pouco mais de conforto do que o oferecido pelos bancos e cadeiras que o clube disponibilizava. Era comum vê-las sendo carregadas às costas dos espectadores pelas ruas da vila nos dias de sessão. Elói, além disso, em dias de jogos do Vasco da Gama, carregava no ombro um gigantesco rádio portátil Transglobe da Philco, e, no meio da sessão, gritava comemorando os gols de seu time. Nesta hora, toda a plateia retrucava: "Cala a boca, Elói!".
Com o advento do golpe de estado que derrubou João Goulart, em 1964, uma das primeiras providências do governo Castello Branco foi ordenar a erradicação de cafezais, na tentativa de aumentar seu preço no mercado externo. O resultado imediato da desastrosa medida, além de falcatruas em pagamentos pela retirada de plantações e mais plantações que enchiam o distrito desta riqueza agrícola, foi o êxodo rural. As roças perderam as pessoas, que partiram para os grandes centros, como o Rio de Janeiro, o que, aos poucos, foi transformando a vila próspera e vibrante em um amontoado de casas sem o brilho de outrora. 
Carabuçu ainda está lá, querida por seus filhos, mas sem a pujança dos meus tempos de menino e adolescente.

Wassily Kandinsky, Outono na Bavaria (séc. XX), em jokerartgallery.com.

(*Corrigido a partir de lembrança da amiga Riva.)

9 comentários:

  1. Essa História de Carabuçu é nota 100 (como antigamente) quero mais por favor...

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    1. Jacira, veja a primeira parte, que saiu anteriormente. Aí está o link
      http://asfaltoemato.blogspot.com.br/2012/07/registro-economico-sentimental-das.html

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    2. Muito bom! Só faltou alguma coisa sobre o negócio do Hermogenes (Ex-combatente na Itália) lá no morro da Escola. Era um tipo de comércio que não me lembro no momento.
      Lembro também da oficina de serralheria do José Lage o qual chamávamos de zezinho, o irmão da Dorcas de Paula. A Oficina ficava em frente à casa do Joaquim eletricista.
      Lembro, também da carpintaria do Sr. Martins, que ficava em frente à praça da igreja.

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    3. Verdade, Josias! Para você ver que, mesmo nos imaginando com a memória em dia, há falhas. Só não me lembro do Sr. Martins. Mas dos outros você os reavivou em mim. Grande abraço!

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  2. Foi No Período das Arrancaçoes dos Cafezais que Meu Avô Doca Nascimento e Outros Fazendeiros Quebraram... Veio as Plantações da Cana de Açúcar e As Usinas não deram Vazões de Consumos... Falências Geral...

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    1. Foi o período negro da vila. As roças ficaram vazias e a vila entrou em compasso de espera. Posso dizer, com certeza, que houve uma regressão das atividades. Uma pena!

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  3. Observação... Não Sou mais Presidente do Rotary Club de Belford Roxo... Visto que Os Nossos Mandatos São Anuais... Deus Abençoe a Todos...

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