28 de julho de 2012

REGISTRO ECONÔMICO-SENTIMENTAL DAS ATIVIDADES LABORATIVAS DA VILA DE CARABUÇU AO TEMPO DA MINHA MENINICE E ADOLESCÊNCIA, COM ACHEGAS PESSOAIS NEM SEMPRE PERTINENTES (PARTE I)


(Dedicado a todos os que aqui vão citados, vivos e mortos, sem distinção, pois todos são parte da minha história de vida.)

Quando a disposição física amaina, para compensar, o cérebro dá de produzir a efervescência de coisas que estavam assentadas em algum escaninho emperrado da memória, pegando a poeira do tempo.
Pois foi o que me ocorreu, ao ir de Niterói para Miracema, por esses dias. O rádio do carro tocando um cd que gravei como um DJ alucinado, tal a variedade de músicas - de Vivaldi a Alpha Blondi -, a cara-metade ao lado a cochilar asfalto afora, e as gavetas das reminiscências abrindo e fechando, no embalo das curvas e no solavanco das imperfeições da estrada.
Como flashes, surgiram-me nomes, locais, atividades, que faziam de Carabuçu, no meu tempo de menino, uma vila cheia de gente e, portanto, de vida, de movimento. Principalmente aos sábados, quando o povaréu que habitava as roças do seu entorno, para ela acorria, no afã de comprar provimentos para a semana, aproveitando também para se divertir, encontrar amigos com que trocar uns dedos de prosa, lamber uma "dósia" daquela que matou o guarda, tentar a sorte na sinuca, no cisprandi, no carteado e na roleta.
Vez e outra, alguns homens se juntavam para cantar calango, para bater caxambu, quando diziam versos tradicionais e de improvisos, alguns líricos, outros satíricos, outros tantos fantásticos, como esses que me ficaram na memória, sempre cantados repetidamente, com ligeira alteração apenas na melodia: 
“Na cama de Jesus Cristo,
Quantos travesseiros tem?"

"Menina bonita chegou agora
De Santa Luzia de Carangola."

"O meu boi tava chorando
Só porque botei na canga."

Aí começaram a me aparecer as imagens. O caxambu, por exemplo, não era batido na caixa que lhe dá o nome, mas, antes, em caixotes de sabão vazios, que percutiam som assemelhado ao do instrumento, conseguidos, por exemplo, na venda do Cirilo.
Cirilo Braz tinha seu pequeno armazém de secos e molhados, semelhante ao de meu pai, que ficava do outro lado da rua. Maior e mais sortido que os dois, era o do tio Nalim, situado bem pertinho, na rua em frente, a Cel. Antônio Olímpio de Figueiredo (nome do meu bisavô).
A favor do de tio Nalim, havia o maior sortimento de mercadorias e o atendimento por dois ou três caixeiros, como chamávamos os atendentes de balcão. Seu Cirilo vendia pinga e pastéis que sua mulher, dona Flor, fazia. Já o movimento da venda de meu pai era intenso por conta dos pés de moleque feitos por mamãe e da roda de conversa de pescadores e passarinheiros, que ali se juntavam para desfiar casos sem fim.
Havia ainda as vendas do Lulu, que depois adquiriu o negócio de Quinca Emiliano e trocou de ramo, do Nilson Pontes, do Elias Penudo e do Elói Andrade, também próximas, e as do Lili e do Rossini Oliveira, na Coreia, uma espécie de bairro, após o morro do cemitério. Na rua de entrada da vila, ficava a venda do Aristides Turques, que, certa época, resolveu plantar tabaco, que processava em forma de rolo - fumo de rolo -, para o consumo da vila e dos vizinhos.
Quando eu era muito pequeno, aos sábados, às vezes, quando minha mãe não podia, seu Aristides Lugão ajudava meu pai a despachar os fregueses. Depois que fiquei maior e mais esperto, eu mesmo fazia isto.
Na falta de geladeira, Elói tinha um fosso redondo no canto de sua venda, em que colocava garrafas de bebidas sob sal grosso, a fim de refrescar o líquido. Lembro-me também que, durante as eleições, alguns políticos encomendavam a ele o fornecimento de refeições a seus eleitores, que comiam fumegantes e cheirosos pê-efes de dar água na boca, sobre uma longa mesa improvisada a céu aberto. Vendo aquela comilança toda, ficava torcendo para chegar meu tempo de eleitor, só para desfrutar daquele prazer que via nos olhos das pessoas humildes devorando pratos e mais pratos de comida.
Armarinho, só a loja do Felisberto Gonçalves, onde certa vez comprei pequeno porta-joias de louça como presente de aniversário para minha professora, o qual se espatifou à entrada da sala de aula, devido a um tropeção na soleira da porta. Meu coração também se partiu em inúmeros cacos pelo chão.
Já as lojas de tecidos eram em maior número: a maior, do tio Nalim, colada à sua venda de secos e molhados; do outro lado da esquina, a do João Mestre; mais acima, a do Cid; e mais abaixo, a do Enéas Lírio, que posteriormente trocou de atividade e abriu um bar no local. Todas elas, com variada oferta de tecidos. Quando surgiram as primeiras camisas Ban-Lon, uma febre então, alimentei o sonho de um dia poder comprá-las. Ao crescer e ganhar meu dinheirinho, as camisas já não eram tão caras e já não estavam tão na moda. Mesmo assim, comprei uma na cor vinho. Seu tecido sintético e elástico amoldava-se ao corpo do usuário, mostrando músculos e gorduras sem constrangimentos.
Açougues havia o do Antonio Manhães, sucedido por seu irmão Deco, em outro local; o do meu tio Tônio Pinto, que ora também tinha bar. Custódio Quintal, além das carnes, aproveitava para vender picolés. Ciloca Peçanha, o Pé de Rodo, também teve seu açougue. No açougue do tio Tônio, sempre que ia pegar a carne que minha mãe encomendava, pedia a ele para comer o tutano da canela do boi. Ele me autorizava e eu metia o dedão no orifício do osso, de onde tirava porções de tutano, que comia mesmo cru.
Bares e botequins eram muitos. O de Antônio Chambão, com uma grande mesa de sinuca, vendia ótimos beijinhos de coco e marons; no do libanês Altivo Sabino e no do seu filho Mansur, eram os quibes fritos; os de Mateus e seus filhos Almerando e Roldão, cada um com o seu, com mesas de sinuca e bilhar; o do Barrosinho, que fazia uns picolés em que, de vez em quando, achávamos penugem de pombo; o do Manuel Ribeiro, que tinha aspecto mais familiar e onde Celinho, meu primo, comprava pastilhas de hortelã que chupávamos para, em seguida, beber água e senti-la geladinha. Mais tarde, tio Aylton comprou o do Barrosinho, onde, por breve tempo, andei atendendo e servindo cachaça gelada para Darcizinho, filho do Darci Modesto, comerciante de bebidas, aí incluída a dita cuja que passarinho não bebe.

Certa vez, Roldão veio ao Rio de Janeiro, de onde voltou com uma novidade tecnológica, para incrementar o atendimento aos clientes: um reluzente liquidificador. Foi o primeiro que vi na vida. Roldão, todo orgulhoso, mostrou para mim e meus primos, que fomos comprar picolé, a nova geringonça. Celinho, sempre curioso e debochado, resolveu perguntar ao Roldão qual era a velocidade do aparelho. Em sua fala estropiada pela gagueira, o dono do bar, disse:

- Quer dizer... quer dizer... noventa por cento.
- Noventa por cento de quê, Roldão? - quis saber Celinho.
- Não, não, sei. Só, só, sei di-dizer que é noventa por cento.
Farmácias eram duas: a do Zé Ferraz, o Zé da Farmácia, e a do Antônio Miranda. Na do Zé, além das injeções de Gadusan na veia, podíamos ler sua coleção de gibis de faroeste. Antônio Miranda era pai de Tarcísio, meu amigo e dono de uma maravilhosa coleção de Estampas Eucalol, com que aprendíamos sobre cultura geral em pequenas e belas doses. Hélio Contreiras imortalizou essas figurinhas na canção Estampas Eucalol, gravada originalmente por Xangai (veja o clip aqui: http://youtu.be/Y4-35AIQJoQ)
Juca Jacó e Quinca Emiliano tinham, em seus armazéns de beneficiamento, máquinas de pilar arroz e moer milho. Meu avô Juquinha de Paula, na entrada da vila, administrava o de pilar café e arroz de propriedade do libanês Quirino, cujo nome deve ter sido obviamente adaptado. Normalmente a paga pelos serviços prestados era feita com parte da produção. Por isso era possível comprar com eles arroz pilado, fubá e canjiquinha.
As quitandas eram duas: a do Joaquim Moreira e a do Caio Manhães, esta última notável pela desarrumação das mercadorias que se amontoavam a partir das portas de entrada e pelo comportamento histriônico de seu proprietário, sempre espaventoso.

Piet Mondrian, Árvore cinza (1910), em paintings.name.

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Nota: Para não cansar meu estimado leitor, dividi este texto em duas partes. A segunda virá postada logo a seguir.

4 comentários:

  1. Ótimas lembranças, adormecidas no fundo da memória! delicioso reavivá-las, obrigado

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  2. MEUS TEMPOS SAI DE CARABUÇU (LIBERDADE) EM 1953 NATUREZA PURA E LINDA PRA TODO LUGAR CAFESAIS A PERDER DE VISTA NA CIDADE TINHA DOIS MULADEIROS COCHEIRO SE ME ENTENDEM P/ GUARDAR OS CAVALO UMA ESPECIE DE ESTACIONAMENTO DA EPOCA UM NA ENTRADA QUE VINHA DA FAZENDA LIBERDADE NA DECIDA DA RUA PRINCIPAL E OUTRO NO COMEÇO DA COREIA LA NADECIDA APOS O CENTRO DO NENEM E ESCOLA DO NENEM MOREIRA MEU AVÔ MATERNO

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    1. Isso mesmo. Boa lembrança. Obrigado pela leitura e o comentário.

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