Arco-íris sobre a BR-356, em Itaperuna/RJ (foto do autor). |
É
cedo ainda.
O dia amanheceu com uma chuvinha chorosa de outono.
Minha mãe foi para a cozinha preparar o café, enquanto
eu vou para o quarto fazer companhia a meu pai.
Ele está com seus noventa e cinco anos sentados à
beira da cama, perdido em algum lugar do passado.
Sento-me ao seu lado, peço a bênção e procuro trazê-lo
um pouco para esta sexta-feira fresca de junho de dois mil e doze:
- Dormiu bem à noite, pai?
Com certa dificuldade para ouvir, tenho de repetir a
pergunta, um tom acima.
- Não, dormi muito mal! - responde ele.
Percebi, pela inflexão da resposta, que me
reconhecera. Quando isto não ocorre, ele fala com certa formalidade na voz.
Algumas vezes, ocorre não reconhecer ninguém; penso
que nem a si mesmo, com todos esses anos acumulados.
Peguei meu pente, a fim de lhe dar um jeito aos
cabelos, a esta altura da vida tão ou mais abundantes que os meus, em seu minguamento generalizado.
Ele sorri e me agradece o gesto, o mesmo que me fazia
na minha meninice. E faço-o agora, para retribuir ao carinho que então me
dispensava, quando, com suas mãos ainda úmidas do perfume que usava, passava-as
sobre meus cabelos, para que também ficassem cheirosos.
Volto a me sentar ao seu lado, e ele retoma a conversa
de data perdida no tempo:
- Quero que você telefone para mamãe. Peça para ela
vir passar uns dias comigo.
Com bastante frequência, nestes últimos meses, ele é
uma mistura confusa de homem jovem, maduro e idoso, no emaranhado do cérebro
afrontado por calcificações no lobo frontal.
Então lhe digo que vou fazer o que me pede. Vou
procurar o número do telefone dela, para passar seu recado. Um telefone que não
existia em Liberdade, por aquele tempo.
- Deixe comigo, pai! Vou ligar para ela.
Percebo, então, que ele faz cara de choro e pega um
paninho para enxugar o nariz.
- Sem ela, eu não sou ninguém! - diz ele com jeito de
menino carente. - Mas seja discreto: não diga pra ela que não estou muito bem.
E me emociono em ver meu pai numa fragilidade
impensada.
Ponho minha mão sobre seu joelho, num afago que tenta
consolar. Como os adultos fazem com as crianças desconsoladas.
Na hora do café, comento sobre esta passagem com minha
mãe, que, embora durona, tem os olhos marejados. E comento com ela sobre o
papel avassalador que têm as mães sobre seus filhos, não importem as idades
deles ou o fato de que já se tenham ido há mais de seis décadas do nosso
convívio, como é o caso de vovó Benedita, mãe do meu pai.
(Para minha mãe e minhas irmãs, que se desdobram nos cuidados quotidianos de meu pai.)
É assim, Saint-Clair, todos, com o passar do tempo, deixamo-nos ficar nalgum lugar do passado.
ResponderExcluirLindo Sancler! Como a vida é injusta. Um homem que já teve força de atleta, inteligência de gênio, Bondade de um PAI presente em minha VIDA, se tornar uma pessoa sem atitude, sem querer, sem poder (não de poderoso), simplesmente um ser desprotegido, que agora vem mostrar o quanto a sua mãe foi importante em sua vida, tão amada. Você melhor que eu bem sabe quantas vezes foi tocado no nome de nossa avó dentro de casa. Agora, que percebemos que vida sofrida ele teve.
ResponderExcluirPara que sofrer mais?? Não entendo o sentido da vida e quer saber vendo isso acontecer nem quero saber, apenas pagar para ver. Obrigada por dedicar a nós esta crônica.
PS: Quando vc está por perto tudo fica mais fácil, MTO MAIS.
Bjoss rimão.
Verônica Machado de Mello.
Linda crônica, Saint-Clair. Me reportei ao convívio com meu pai, da mesma forma.
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