16 de junho de 2012

D O M I C I A N A

Algumas tardes de maio, o sol costumava vir por entre as copas das árvores, um pouco timidamente, e entrava pela janela aberta, encontrando na cama a mesma figura quase imóvel de Domiciana. Os lábios apertados, rezando ou resmungando imprecações contra o frio e o desconforto das brancas tardes de maio.

No simulacro de quarto, a pobreza por portas e paredes, janelas e mobiliário, urinol de ágate descascado sob a cama. Exuberantes, somente a dor e a doença.

Desde os tempos de adolescência, uma estranha doença a tinha atirado sobre um colchão de capim e transformado uma esperança de dona de casa, com filhos e criações de quintal, marido chegando a cavalo de noitinha, num trapo de gente, resto de vida desprezível, cujo único horizonte agora era aquela janela aberta das tardes claras de maio.

Seu único e perdido namorado de juventude andava campeando gado em outras terras, deslembrado dela, inutilidade em que se convertera. A família, pequeno ajuntamento de gente resignada que a suportava como um fardo confiado pela provação divina, a quem não se podia contrariar, sob pena de perder a bem-aventurança eterna.

Quem sabe um terço, uma jaculatória, uma ladainha de Nossa Senhora? Quem sabe um mingau ralinho de fubá ou araruta, uma canja de galinha, um café com leite e migalhas de pão dormido? Quem sabe um baile na casa de seu Zinho, os lampiões iluminando mal e mal, a sanfona do Tatão, o pandeiro do Louro, o banjo do Tião da Hortênsia? Quem sabe um namoriquinho à-toa, quase inocente, só um apertinho dolorido no peito, uma babugem morna na nuca? Quem sabe a cama quente com o homem amado, garanhão fogoso nas noites de nunca mais? Quem sabe a morte, essa milagreira infectada, essa nojenta companheira de todos os desgostos, essa viajora dos descaminhos noturnos? Quem sabe o nada?

Mais um pouco e o sol suave das brancas tardes de maio despede-se também da devastadora solidão de Domiciana. No quarto, o murmúrio das rezas e das imprecações contra a noite e o desconforto que se avizinham.

Hieronymus Bosch, O jardim das delícias, detalhe, 1504 (em artwallpapers.net).

(Publicado originalmente em Gritos&Bochichos em 25/3/2010.)

Um comentário:

  1. Que realidade essa a de Domiciana? Parece que a encontramos e a sentimos de perto.

    Abraço do Pedra

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