21 de dezembro de 2011

TIPOS ATÍPICOS

Quando Marly foi trabalhar no departamento de lentes de contato da Ótica Olhar, chegou com a exuberância de um sorriso com mais de vinte centímetros de dentes grandes e bonitos, emoldurado por uma pinta sensual um pouco acima do lábio, do lado esquerdo do rosto, que quase sumia no vinco da face. Séria, ela voltava a seu lugar.
Marly era uma moça alta, cabelos castanhos escuros lisos, olhos negros, sobrancelhas grossas bem cuidadas. Lembrava a atriz grega Irene Pappás, do filme Zorba, o grego. Chegou com uma aliança a indicar-lhe a condição de noiva. E toda sua espontaneidade, toda sua alegria não poderiam ser confundidas com nenhuma permissividade, para que qualquer desavisado chegasse com cantilenas velhas e conhecidas. Estava com os dias contados para dar fim a sua vida de solteira e mostrava isso com a expressividade possível.
Sílvio, rapaz mais jovem que já trabalhava lá, via-a com a cobiça dos adolescentes, sabendo que tudo não passava de um sem jeito danado para com as mulheres. Mas se comprazia em ficar imaginando saliências com ela, na vã esperança de que seu dia haveria de chegar. Mesmo ela sendo mais velha do que ele: ela uma mulher feita, ele um projeto de homem cheio de espinhas no rosto.
Os dois seguiam em seu trabalho normal. Ela, técnica já formada em lentes de contatos – daquelas primeiras que apareceram no mercado –, dava-lhe informações, ensinava-lhe coisas, com todo jeito, o que fazia aumentar, ainda mais, as bobagens que ele imaginava. Nunca, porém, Marly dava a mínima demonstração de que houvesse qualquer coisa que não fosse a relação de colegas de trabalho, também porque o via quase como um menino.
Até que um dia, passados dois meses desde que ela chegara, seu noivo, Edvaldo, resolveu aparecer para pegá-la, pois iam ver alguma coisa para o enxoval.
Aquilo não era um noivo, pensou Sílvio na sua inocente esperança adolescente! Um cara gordo, mal ajambrado, linguinha, zarolho, grossos óculos redondos a fazer par com as bochechas vermelhas também mais que redondas, o cabelo ruivo cortado à escovinha, tipo Sargento Tainha. Que tipo Marly escolhera para noivo, continuava seu pensamento. Deve ser rico, não é possível! Não há outra explicação!
O contraste entre noivo e noiva ficou ainda mais escandaloso, quando os dois saíram porta afora, ela dando-lhe o braço, destacada sua perna bem feita no vestido curto, e ele, calça afivelada acima do umbigo, a bunda murcha dos gordos da cintura para cima, os joelhos um tanto junteiros.
Só pode ser isso: Edvaldo deve ser montado na nota! Deve ser filho de papai, já coroa, meio panaca, como sua cara demonstrava, e Marly, mais do que esperta, esperava faturar um casamento cheio de facilidades. Um dia, quem sabe, ela lhe daria uma sova na cama, daquelas de abalar quarteirões, e aquele coração gordo explodiria – era impossível aguentar o tranco de Marly – e ela ficaria uma viúva bonita, nova, rica e com um sorriso de vinte centímetros de lado a lado da cara. Aí, quem sabe, ele teria a chance que vivia imaginando. Como diz o samba, sonhar não custa nada.
Mais outros dois meses se passaram, quando seu patrão inaugurou lanchonete na galeria do prédio, para diversificar suas atividades de comerciante. E qual não foi a surpresa de Sílvio ao constatar que o cozinheiro da lanchonete era o Edvaldo.
Então foi que ele não entendeu nada mesmo. Estava claro que o cara não era, assim, filhinho de papai. Antes, era feio à beça, mal ajambrado e não tinha dinheiro. Mas que diabos Marly viu nele?
Ah, já sei, continuou pensando. Aliás, era o que mais fazia o rapaz: pensar na situação de Marly. O Edvaldo deve ser bom de cama. Eu aqui pensando merda e o feio é uma máquina de fazer sexo, de deixar a Marly louca. Outra explicação não seria possível, segundo a cabeça aparvalhada do jovem.
Até que chegou um dia que teve coragem de perguntar a Marly, num momento de folga, como ela conhecera Edvaldo.
As famílias dos dois eram vizinhas e eles se conheciam desde meninos. Edvaldo sempre foi seu amigo, estudaram juntos na mesma escola, embora não fossem colegas de turma, e um dia, assim como que por acaso, numa brincadeira ainda de adolescentes, Edvaldo, já com seus óculos redondos e suas bochechas gordas, falou que era apaixonado por ela. Deu-lhe um beijo no rosto, ficou todo vermelho, embaçou as lentes e disse que queria se casar com ela quando ficassem adultos.
Agora estavam os dois arranjando a casa, comprando móveis, terminando o enxoval, e iriam casar-se como quem vai fazer a coisa mais natural do mundo: um homem e uma mulher morarem juntos, dividirem a vida e, se possível, serem felizes, não importassem as diferenças. Era apenas uma coisa de gosto, de sentimento, de amor.
Lá no fundo, Sílvio pensou um puta que pariu contrafeito e desentendeu ainda mais da vida de que ele já tão pouco entendia. Vai-se dormir com uma coisa dessas!

Lampião e Maria Bonita (em tyba.com.br).

2 comentários:

  1. Se tudo na vida tivesse uma explicação, se tudo fosse previsível, coubesse dentro dos roteiros que elaboramos, nunca teríamos inventado um negócio chamado metafísica.

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  2. Mas eu soube que o Edvaldo virou corno, tempos depois. Muito bom!

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