8 de julho de 2013

O CANALHA


Alfredinho Pestana nasceu com vocação para a canalhice. Dona Benedita, a parteira que o trouxe ao mundo, nas imediações do Largo do Boticário, notou isso, quando puxou o moleque pelas pernas. Desde a idade mais miúda, começou a dar mostras do que seria no futuro.
E passou pela infância e adolescência exercendo esta virtude tão nobre ao espírito de certo tipo de gente.
Ao lhe chegarem os primeiros fiapos no buço, tratou de desenhar um bigode que só os canalhas usam. Desses que, ainda que o cidadão não o seja, ao fazer aquele desenhozinho sem-vergonha na aba do beiço, transformam o sujeito num canalha de imediato. Com reconhecimento por onde passe.
E, amparado nesse bigode, foi que um tio deputado estadual lhe arranjou emprego na companhia de águas e esgotos da cidade. Alfredinho Pestana, também Pestaninha para os da sua laia, entrou pela janela, como se dizia, e tratou de nunca dar expediente integral, nem quotidiano, a fim de que o chefe não se habituasse à sua impoluta presença na repartição. Mas sempre estava lá, no espaldar da cadeira, o paletó manjado a denunciar sua ausência do recinto.
Há canalhas que têm certo aplomb. Alfredinho era um desses. Quem o visse à distância, sem que lhe ouvisse as cascatas de canalhices a sair pela boca, poderia tomá-lo por lorde inglês decadente, ainda procurando manter certa pose. Era uma figura meramente figurativa, sem conteúdos humanísticos e intelectuais.
Na época em que reinou nas imediações da Rua do Mercado e adjacências, no início da segunda metade do século passado, dava-se ao desplante de sussurrar saliências nos ouvidos de moças que passassem ao seu derredor. Na esquina da Rua da Quitanda com Primeiro de Março, até conseguiu produzir uma depressão na calçada de pedras portuguesas, de tanto estacionar ali sua pessoa, na ânsia de conseguir que as canalhices que dizia às moças surtissem algum efeito. E, não raro, saía ele de compromisso apalavrado para o hotelzinho furreca que ficava na esquina de Rosário, o qual, muitos anos depois, desabaria de tanta vergonha cometida em horário de expediente laboral.
Alfredinho não tinha na cara nenhum lustre a perder e não se ofendia com as respostas malcriadas que recebia pelas platibandas da maioria das mulheres com quem se engraçava. Sabia que o princípio básico que rege a canalhice é a cara de pau. E se fiava na lei das probabilidades matemáticas, para produzir um sem-número de frases de duvidoso efeito a se lançar à cata de corações incautos. De dez, uma que caísse era, como se dizia, naquele tempo, macuco no embornal. E o resto, depois, era saçaricar na porta da Colombo, com seu costumeiro grupo de canalhas profissionais, que teimavam em fazer resistir uma tradição em vias de extinção.
Mas como, até para os canalhas, o mundo não é um mar de rosas, deu de cair em suas graças mulata bem apessoada, moradora das imediações da Gamboa, quase chegando ao Santo Cristo, que lhe rendeu aborrecimento de grande vulto.
Imagem em artedaqui.com.br.

A tal mulata, cujo nome de batismo era Gerusa, tinha portentosos talentos físicos a emoldurar sua pessoa, tanto que, ao passar, era como se um tufão varresse os pescoços masculinos para um só lado das calçadas do centro da cidade.
Como são inescrutáveis a lógica e a mente feminina, a mulata acreditou piamente em todas as mentiras deslavadas que Alfredinho lhe expôs e passou a enganar seu parceiro de longa data, um mulatão dobrado, que atendia pelo codinome de Absoluto e dava plantão como x-9 na delegacia da Praça Mauá, nas noites de fim de semana.
Absoluto não era – para não fazer um trocadilho infame – absolutamente uma pessoa sensível e de coração macio, de modo que, ao saber dos pulinhos de sua mulata, através de ligação anônima para um daqueles antigos telefones de repartição policial, tratou de dar um flagrante delito na sem-vergonhice dela.
E foi achar Alfredinho deitado na cama, em ceroulas brancas, meias até o meio da canela, piteira baforando fumaça pelo quarto do hotelzinho hoje inexistente. Gerusa, naquele exato instante, fazia a higiene parcial de sua mulatice, a fim de deixar a área de lazer mais limpa que corredor de berçário de recém-nascido.
Sem tempo de perceber o que acontecia, Pestaninha foi posto a pescoções escadinha abaixo, naquele trajezinho comprometedor, até a porta da rua, e entrou no primeiro lotação que passava pela Primeiro de Março, virando motivo de chacota para os passageiros das quinze horas.
Da mulata Gerusa ele nunca mais soube, nem notícias procurou, com medo de que Absoluto perdesse em definitivo as estribeiras e encomendasse sua alma às profundas do inferno.
No dia seguinte, a Luta Democrática, de Tenório Cavalcanti, informou o infortúnio de Pestaninha, em página interna, sem muito destaque, já que não havia corrido sangue, interesse primordial do diário, tendo-se constituído apenas em entrevero de somenos importância.
Como bom canalha que era, Alfredinho Pestana nunca tomou tenência na vida, mesmo depois do vexame por que passou. Apenas procurou, a partir de então, saber dos antecedentes amorosos de suas conquistas, de modo a não expor, em demasia, sua pele a desgastes irreparáveis.

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