24 de abril de 2013

1 ALMEIDA, 2 E 3

ALMEIDA 1
- Almeida, encoste a porta antes de entrar e não deixe as meias na pia do banheiro!
Toda noite era a mesma coisa, e Almeida, praticamente incorrigível. Se ela não falasse, ele deixava aberta a porta do quarto, por onde entrava um ventinho frio no meio da madrugada, capaz de atiçar a asma encruada da Zuleica, e suas meias usadas ficavam disputando espaço com os inúmeros potes de cremes da mulher.
O formalismo de Almeida, apesar dessas duas pequenas falhas de comportamento, se refletia até mesmo no sacrossanto recesso do lar: sua própria esposa o chamava pelo nome comercial: Almeida. Como se fosse a marca de algum produto de limpeza, de um leite UHT.
Almeida se passava por uma empresa prestadora de serviços de contabilidade, embora ele mesmo não fosse proprietário de empresa nenhuma. Porém era o contador sênior da Seabra & Seabra há vinte anos. Lá reinava com seus números e suas vírgulas, pesquisando centavos ao fim dos balanços, como se procurasse trufa negra.
Contudo, em casa, era um homem de modos antigos, de não saber fritar um ovo, nem passar um café. A mulher, Zuleica, que só não foi registrada com K porque o tabelião, à época, era um nacionalista ferrenho e não grafava nenhum nome de recém-nascido com letras estrangeiras, já se adaptara a ele. Talvez isso – a falta do K – tenha feito com que Zuleica se casasse com um tipo como o Almeida, que não cheirava nem fedia, mas era correto com ela.
A única coisa realmente esquisita que a mulher achava nele, dentre todas as esquisitices que um contador esquisito e metódico pode ter, era de, a cada quinze dias, ir fazer obrigação de santo num terreiro depois de Vilar dos Teles, de onde voltava só na manhãzinha seguinte, todo estropiado por ter passado a noite em vigílias e trabalhos espirituais.
Invariavelmente chegava a casa, nesses momentos, trazendo um frango assado com farofa, sobra do dia anterior, que comprava na padaria em frente do ponto de ônibus a preço de promoção.
Zuleica, então, se levantava, fazia-lhe um arroz fresco, bem molhadinho, carregado no alho e no azeite extravirgem, como de seu gosto, e o via devorar a metade do galináceo requentado no forno micro-ondas.
ALMEIDA 2
Almeida era o Almeidão para os seus colegas de trabalho da Seabra & Seabra, empresa de assessoria contábil, com um razoável portfólio na praça de Madureira e adjacências, prestadora de serviço para a maioria das lojas, quiosques e boxes do Mercadão.
Embora fosse tido como um cara correto profissionalmente, recebera o apelido de Almeidão pelo seu porte físico e, sobretudo, por seu bigode da largura do beiço superior, aparado de forma quadrada, o que lhe dava ares de sujeito antigo, severo e disposto a um balanço complicado.
Almeidão não deixava que seu adereço piloso ficasse sem uma tinta negra encorpada, de modo que, de longe, se podia perceber a chegada do dono só pelo brilho da bigodeira. Aquilo chegava a ser uma ostentação na empresa.
Quase certo como dois e dois são quatro, na primeira sexta-feira do mês, após o pagamento dos salários dos funcionários da empresa, Almeidão comandava uma rodada de chope com seus colegas, ocasião em que aproveitava para dar uma relaxada, contar umas piadas antigas e rir de modo travado, como deveria ser do feitio de um contador sênior, cheio de responsabilidades.
Nessas oportunidades, tomava duas ou três tulipas de chope e ia embora para casa, porque a “patroa estava esperando para as compras do mês no mercado”, como gostava de dizer.
Os colegas mais chegados, então, gritavam em uníssono, quando ele saía porta do bar afora, em direção ao ponto do ônibus que o levaria para casa:
- Vai, Almeidão!
Ele, um tanto envergonhado, levantava o braço desocupado da valise, sem olhar para trás, e sumia no meio da multidão.
Tinha cumprido sua tarefa mensal de Almeidão.
ALMEIDA 3
Quando Almeidinha chega à casa de Vanúsia, a cada quinze dias, sempre às sextas-feiras, sabia a vizinhança que a reinação iria entrar noite adentro.
Vanúsia era sua colega de trabalho na Seabra & Seabra e se dispôs a dividir lençóis e travesseiros, em forma de concubinato consentido, pois sabia do estado civil de Almeida. Tudo começou depois de uma noite que tiveram de dobrar à procura de alguns centavos perdidos nos registros do balanço anual do Talho Capixaba, açougue bem estabelecido pelos lados do Mercadão.
Ao voltar da copa, onde fora pegar um cafezinho para a colega de procuras minuciosas, chegou seu bigodão indecente no cangote moreno dela e liberou alguns haveres futuros e salientes, de modo que Vanúsia achou por bem abrir uma firma paralela com dona Zuleica, com caixa dois e tudo, mas sem registro nos anais da Junta Comercial.
Aí o Almeidão passou a ser o Almeidinha, que chegava sempre com uma garrafa de vinho tinto, uma pastilha azul, e a disposição que não tinha nem em Seabra & Seabra, nem em sua casa na Travessa Natal, quase esquina da Carvalho de Souza.
A noite, então, não tinha horas para terminar, pois não acabava senão aos primeiros alvores do dia, quando, com um beijo nos lábios carnudos de Vanúsia, ia em direção ao ponto de ônibus que o deixaria em frente à padaria, onde compraria o frango assado que sobrara da sexta-feira e iria matar a fome de uma noite de esbórnia, encoberta por devoções inexistentes.
E Zuleica, sem K, o recebia cedinho, arrozinho fresco para acompanhar o frango assado, pesarosa dos graves deveres de filho de santo de seu devotado marido Almeida, sisudo contador sênior de Seabra & Seabra, há mais de vinte anos.



Imagem em rubylane.com.



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