4 de janeiro de 2013

DIZ-SE NA MINHA TERRA (II)

Da memória que guardo das coisas da minha terrinha natal, do tempo em que era seu morador em tempo integral, um dos sabores mais gostosos que provei foi o da linguagem do povo.
Algumas das formas características de lá, na verdade, pertencem a um fundo linguístico geral, trazido para cá pelos portugueses – mais a contribuição africana e indígena – e podem ser encontradas em outros locais, como já tive oportunidade de observar.
Em todo caso, trago para sua curiosidade mais algumas delas, em continuação à crônica anterior.
O povo lá de Carabuçu, antiga vila de Santo Antônio da Liberdade, sempre foi trabalhador, batalhador da vida: a maioria vivia das lides da roça; alguns outros, do pequeno comércio e do serviço da vila. Apesar da luta de todos eles, ninguém lá lutava, senão em disputas físicas assemelhadas a brigas. Todos eles pelejavam. E pelejar era dito de uma forma que revelava um fardo pesado a se suportar.
- E aí, seu Antônio, como vai?
- Pelejando, pelejando!
E aquilo parecia um trabalho de Sísifo.
Já o substantivo peleja identificava um tipo de cobertor rústico, usado pelas famílias pobres para os dias de frio. Se a peleja era mais curta que o usuário, virava bicicleta, por semelhança ao movimento de pedalar: puxar para cobrir a cabeça, espichar para tapar os pés. O que era um desespero nas noites mais frias. E o próprio cobertor era chamado de coberta.
Havia um homem com uma risada engraçada, que lembrava o barulho de um cobertor velho sendo rasgado. Seu apelido: Coberta Velha.
Toalha de banho é enxugador; ferro de passar, engomador; alfinete de fralda, vagabundo; grampo de cabelo, misse, que, inclusive aparece registrado na bela canção de Elomar, O pidido*, gravada no álbum Das barrancas do Rio Gavião, de 1972.
Quando alguém, por algum motivo, não cumpria o que lhe cabia e deixava algo sem solução, dizia-se – não sei se ainda existe tal expressão – “fulano cagou na retranca”. Cagar na retranca equivale hoje a deixar furo. Também se dizia, quando não se quisesse lançar mão de expressão tão chula, “fulano roeu a corda”.
E houve um termo com uso extremamente frequente na década de 60, quando apareceu: puaia. Puaia é o elogio falso, com o intuito de zombar do outro, sem que ele perceba. Deste modo, quando alguém fazia isso com o outro, dizia-se que ele estava dando puaia. Se acaso o outro acreditasse naquilo, dizia-se, então, que ele estava comendo puaia. Os dicionários Aurélio e Caldas Aulete grafam a forma poaia (palavra que veio do tupi pu’aya), um tipo de raiz medicinal também conhecida por ipecacuanha.
A prática de dar puaia se difundiu tanto, sobretudo entre os jovens, que as pessoas ficaram atentas a qualquer tipo de elogio, que era sempre tomado por falso e, portanto, inaceitável, para que evitassem o constrangimento de comer puaia. Apesar disto, havia sempre os incautos que caíam neste tipo de pegadinha.
Ao pequeno canal rústico, rasgado na terra, para conduzir água, dava-se o nome de banqueta. E havia nas fazendas do tio Aurélio e de seu irmão Pequetito, limítrofes uma da outra, um sistema de banquetas que levava água para mover o dínamo a carvão, que produzia energia elétrica à noite, o engenho de cana de dia, para a produção de melado, rapadura e açúcar mascavo, que lá chamávamos de açúcar batido. Com frequência, aliás, algumas pessoas trocavam o gênero do substantivo açúcar e diziam açúcar batida. Nesta mesma linha, havia a expressão açúcar macaca, que era o açúcar que os trabalhadores das usinas de Santa Isabel e Santa Maria, próximas à vila, recebiam como parte de seus salários e que tinham de vender a comerciantes, a fim de apurar algum valor em espécie.
Vejam que, no caso da açúcar macaca como pagamento, o salário foi totalmente desvirtuado de sua origem. Deveria ser, então, chamado de açucarário.
Havia, entre as crianças e entre os membros de uma família, uma brincadeira singela. Quando se chupava uma laranja (ou qualquer outra fruta com sementes) e vinham caroços à boca, aquele que os tinha desafiava a que o outro adivinhasse quantos eles eram:
- Gorgulho! – dizia o da boca cheia.
- Eu entro! – respondia o desafiado.
- Com quantos? – indagava o detentor dos caroços.
- Com cinco! – e estava feita a aposta, que poderia ser de qualquer coisa sem nenhum valor monetário.
Então o que desafiava começava a cuspir um a um os caroços, seguidos da contagem:
- Um, dois, três, quatro, cinco, seis, sete, oito! Perdeu!
As laranjas-limas de nossa terra, por vezes, tinham mais caroços do que caldo.
Adivinhe o leitor amigo quantos mais Diz-se na minha terra tenho na minha cabeça para postar aqui.
Está feita a aposta!
Imagem em pandag.com.br.


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* Se quiser ouvir a canção, clique no link: http://www.youtube.com/watch?v=1m_233GsseM .

Um comentário:

  1. Quem canta sua terra encanta o mundo. Que venham mais reminiscências desse alpendre gracioso e bem cuidado da memória.

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