10 de janeiro de 2013

CERVEJA COM VINHO, DONA LINDONA E O CABO JARARACA

Toninho tinha treze anos e um medo enorme do cabo Jararaca, de quem já levara uma prensa. Por isso, não se aventurava a atravessar, com frequência, a ponte que liga as duas Bom Jesus, para caçar passarinho ou bisbilhotar a chegada do trem na estação da pracinha, como fazia antes.

Mas isto era coisa do passado.
Hoje, na área de lazer que equipara com uma tevê com tocador de dvd, uma cadeira de praia e um ventilador de teto, no térreo do seu saudoso clube Tupi, não entendeu bem por que voltou tanto no tempo. Certamente não era por causa da combinação de cerveja com vinho tinto, que misturava aos poucos e já o havia deixado um tanto mareado no meio daquela tarde calorenta. Talvez fosse pelo show de Zeca Pagodinho, que via agora e que o levou subliminarmente à imagem do sambista em seu quadriciclo percorrendo as ruas de Xerém, a prestar socorro às vítimas da enchente há pouco ocorrida.

E lhe voltou de assalto a imagem do cabo Jararaca.
Cabo Jararaca era o feroz subdelegado de Bom Jesus do Norte, num tempo em que a polícia capixaba tinha fama de durona. E ele fazia questão de demonstrar isto todos os dias, até mesmo com solicitações estapafúrdias:

- Moleque, vai pegar uma dose de pinga no bar do Osmar e diz que é a mando do subdelegado.
Mas, por outro lado, também tinha o coração amanteigado por Dona Lindona, filha de seu Lalau, moça bem apessoada, cheia de boas prendas e outras tantas reentrâncias e murundus salientes, que enfeitava com sua beleza o guichê de passagens da estação do trem. Contudo, Dona Lindona estava com compromissos acorrentados com um certo Deraldo da padaria, e repeliu com firmeza todas as pretensões caboclas que cabo Jararaca lhe despejava nos mimosos ouvidos.

Toninho calibrou novo copo de cerveja com vinho tinto - Zeca Pagodinho pedia para que a vida o levasse a algum lugar - e escorregou ainda mais nas lembranças daquele tempo. Cristina, sua amiga e ouvinte atenta, estava curiosa para saber o desfecho da paixão do meganha.
Pois o cabo Jararaca não aceitou a rejeição pacificamente. Mulher não rejeita a corte de um polícia graduado como ele! Ruim como era, mandou seus dois soldados trazerem o noivo de Dona Lindona, Deraldo Santana, com padaria e tudo, algemado e preso até a delegacia, localizada exatamente no local onde hoje se ergue a casa dos pais de Cristina.

E providenciou para que a estada dele, padeiro, fosse a pior possível. O próprio cabo deu uma sova de gurumbumba em Deraldo, de mover osso do lugar, de magoar a carne com pisões arroxeados. O noivo apanhou mais que pão sovado.
Dona Lindona perdeu o viço, até pareceu ter murchado seus murundus, ao saber dos maus tratos sofridos pelo amado.

Cabo Jararaca estava com o alvará dos capetas e, quanto mais sabia do sofrimento da noiva, mais descia o peso da lei no lombo do padeiro.
Mas eis que São Pedro se apiedou daquela vítima inocente e mandou a grande enchente de 1943 do Rio Itabapoana, que acabou inundando a rua da delegacia, a pracinha e os trilhos da maria-fumaça.

O prisioneiro foi retirado da cela, para que não se afogasse, e, no tumulto da enchente que pôs abaixo a velha construção, fugiu para casa, aonde chegou todo estropiado.
Dona Lindona e a sogra começaram a tratar do pobre coitado, enquanto seu Lalau chamava seus outros dois filhos, com as recomendações de praxe, exigidas pela ocasião.

Munido cada um com seu porrete de pau-roxo, saíram os irmãos à caça do cabo de polícia, por entre barro e lama, chuva e inundação. Até que o pegaram quase entrando em casa.
Sem tempo de reagir, o cabo Jararaca começou a virar minhoca, a poder de porretadas. Foi tanta cacetada por todos os quadrantes da sua pessoa, que ele acabou em ponto de pão de ló, chegando quase a brevidade, de tão esmigalhado. O que sobrou do valente cabo da gloriosa polícia espírito-santense foi atirado às águas barrentas do Itabapoana e boiou, em forma de cadáver inchado com os olhos comidos de peixe, num emaranhado de gigogas, num remanso do rio na altura de Ponte do José Carlos, que futuramente passaria a  se chamar Iuru, a fim de fazer jus ao tamanho do seu aglomerado de casas.

- E Dona Lindona, Toninho? - quis saber Cristina.
- Curou as pancadas do noivo e se casou com ele meses depois. Embora fosse uma moça muito bonita e cortejada, gostava sinceramente do padeiro.

- E a minha casa quando foi construída?
E a memória do Toninho, que viajava no vaivém do tempo, foi precisa:

- 1945. Eu já tinha meus quinze anos e podia circular à vontade, sem o cabo Jararaca a me amedrontar.
Pôs mais um traçado de cerveja com vinho tinto no copo, reclamou do calorão daquela hora do dia e afogou com um gole generoso as lembranças de um tempo e de duas personagens que ainda teimavam em vir à tona.

Naquele instante, as letrinhas indicavam os créditos finais do dvd de Zeca Pagodinho. E a vida veio trazida na enxurrada do tempo até aquela área de lazer do Toninho do Tupi.
Imagem em pt.wikipedia.com.
 
 

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