27 de janeiro de 2013

ERA MAIS OU MENOS ASSIM (II)

Era mais ou menos assim.
Como diversão, alguns homens jogavam sinuca. Havia, pelo menos, três bares com mesas de sinuca na vila. O do tio Tônio, que depois passou para o Antônio Chambão; o do Roldão, que antes foi do Mansur – um perto do outro –; e o do Almerando, irmão do Roldão, que já tinha sido do seu Mateus, pai dos dois, e localizado na Coreia, uma espécie de bairro da vila minúscula.
Jogava-se a partida tradicional, em que se matam as bolas na sequência de seus números. Jogavam-se outros jogos, um chamado vida e outro, mata-mata, dentre os mais usuais. O jogo de vida era sempre apostado. Os outros podiam ser à brinca, como dizíamos, em oposição àquele, que era à vera.
Sempre durante os jogos, havia a plateia atenta às tacadas, às jogadas, às encaçapadas. Mas era proibido palpite. Isto é, ninguém podia sapear o jogo. Jogador não aguentava sapo dando palpite.
Nico Dutra, fazendeiro que morava numa propriedade próxima à vila, era um jogador especial: quase sempre, ao sair de uma sinuca – posição em que a bola de jogo tem um obstáculo para chegar à bola da vez –, entortava o corpo, num movimento sinestésico, para tentar “ajudar” o trajeto de sua bola. E era um espetáculo à parte ver suas contorções extravagantes, levando o taco consigo.

Quando eu ficava de sapo, olhando os adultos jogarem, me admirava com a habilidade no taco que mostravam, sobretudo, o Elias Pelanquinha, meu primo, e os irmãos Duarte: Romeu, Antônio Milton e Renato. Estes, então, parecia que treinavam juntos.
Havia também a roleta, o carteado, o cisprandi. Todos esses jogados em salas fechadas e “escondidas”, pois sempre foram proibidos. E todos apostados, valendo dinheiro. No bar do tio Tônio mesmo, havia uma dessas salas. Tio Herson sempre ia lá jogar no sábado à noite. Furtivamente eu entrava para ver, e tio Tônio, com um bonachão ar severo, me mandava sair, pois ali não era lugar de criança.
Enquanto isso, as crianças se divertiam brincando de baleba, pião, pique, pique-esconde, pique-bandeira, bandeirinha, peteca, siliprina (ou ciliprina, palavra não dicionarizada), pelada, tira-e-bota (jogo de pedrinhas), cantigas de roda, normalmente à noite, quando meninos e meninas se juntavam e me era possível chegar mais pertinho das garotas bonitas, às vezes tocá-las, durante as danças, e ficar sonhando a noite inteira com aquele prazer inenarrável. Não sei os meus colegas de então, mas eu me apaixonava à toa! No tempo dos bons ventos, soltávamos papagaio ou estrela, segundo o formato da pipa. E jogo de bola era uma constante: na rua, no campo de futebol, em que entrávamos escondidos, em pastos.
Darcizinho, filho do Darci Modesto, era o violeiro da terra. Boêmio, estava sempre com o violão pelas ruas da vila, procurando onde cantar. Ele tinha um bigodinho estreito e aparado, palmeando o lábio superior, os olhos quase sempre vermelhos de pinga gelada – sua predileção. E cantava com voz impostada os sambas-canções e boleros que faziam sucesso à época. Quase sempre era acompanhado por meu tio Louro, que tocava cabaça, às vezes pandeiro, e gostava de fazer segunda voz. Louro era outro amante da camulaia. Normalmente, quando eles cantavam na pracinha, lá estava eu ouvindo.
Do lado da Coreia, havia o Tatão da Hortênsia, exímio tocador de banjo, que também sempre tinha uma roda animada em torno dele.
Aos domingos, quase sempre, o poderoso esquadrão alvianil do Liberdade Esporte Clube entrava em campo, no Estádio Doutor César Ferolla, para a disputa de uma partida do glorioso campeonato organizado pela LBD – Liga Bonjesuense de Desportos. Também quase sempre eu estava lá, com exceção do último domingo do mês, quando havia missa na vila e meu coração ficava dividido entre o jogo e a devoção religiosa. Quando dava tempo, saía correndo da igreja, a fim de pegar os últimos lances.
Meu tio Paulo, o do bigode de Jacob do Bandolim, foi – excetuando-se Mané Garrincha e Pelé – o maior jogador que já vi atuar. Era um rapaz franzino, puxava suavemente da perna direita, por um problema congênito no quadril, e beque central. Os mais velhos sabem a força do nome beque central. Não era qualquer um apto a desempenhar as funções de beque central. Fracos não exerciam tal função em campo. Em times do interior, em primeiro lugar, o camarada tinha de ser dobrado em seu porte físico, já que reinava o princípio esportivo de que ou passa a bola, ou passa o jogador; os dois juntos, jamais! Em segundo lugar, devia ter certo desapreço pela integridade física do adversário. Mas meu tio Paulo era o beque central. Ainda que franzino e um tanto baixinho para a função. Mas foi o mais técnico, o mais competente, o mais habilidoso, que já vi atuar. Tinha perfeito domínio da bola, tanto no chão, quanto no ar. E poucos conseguiam ganhar dele na cabeça. E saía da área com a bola dominada com tal segurança, que aquilo parecia ser a coisa mais natural do mundo.
Nesses jogos de domingo, sempre atrás do gol, ficava um morador do Jacó que, às quatro da tarde, quando o prélio se iniciava, já estava calibrado na cachaça. E se punha a gritar para o nosso time, quando atacava:
- Vêm, vêm, meus canarinhos! Traz que vem, meus canários!
E desconjurava o ataque adversário, ao atirar a bola contra a nossa meta:
- Vai passando, capeta!
Não sei se aquilo dava certo, mas eu tinha a maior confiança nos gritos dele, que me pareciam conter algo de enfeitiçado, capaz de alterar o curso da pelota, conforme seu interesse, que, afinal, era também o nosso.
Nesse mesmo campo de futebol, pelo mês de junho, armava-se um imenso arraial de São João, com fogueira, barraquinhas, bandeirolas estendidas de ponta a ponta, brincadeiras e a quadrilha, marcada por seu Alcino, e puxada na sanfona por meu tio Tatão, que, aqui para nós, tocava mal à beça, mas estava sempre disposto a colaborar. Certa vez, minha prima Maria Ilka o substituiu com méritos. Além de ser uma bonita morena, tocava bem melhor que nosso tio.


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Durante uma dessas festas, foi que ganhei pela primeira vez numa aposta. Meu avô, o Papai Juquinha, irmão do tio Tatão e pai da minha mãe, comprou alguns números da barraquinha do porquinho-da-índia. Pegou um deles e me deu. Fiquei ali, ao lado da barraca, torcendo para que o bichinho entrasse na casinha com o meu número. E ganhei! E qual foi o prêmio? Um cacho de bananas! Então percebi, naquele momento, que a vida para mim não seria fácil. Quem gasta a sorte ganhando apenas um simples cacho de bananas teria de dar duro o resto da vida. E foi o que aconteceu. Começando naquela mesma noite, quando levei nas costas um cacho de bananas quase do meu tamanho.

Mas era tudo mais ou menos assim. Divertido! Lá pelas décadas de 50 e 60 do século passado, na minha pequena vila de Carabuçu.



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Agradeço a meu irmão Gutenberg a lembrança da frase "Traz que vem, meus canários!", proferida pelo torcedor, cujo nome, no entanto, não foi lembrado nem após várias consultas.


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