19 de agosto de 2012

EU E TOM ZÉ; TOM ZÉ E EU.

Em setembro-outubro de 2003, fizemos uma viagem por Portugal, Espanha e França: Jane, eu e os amigos Laura e Rogério. Chegamos por Lisboa, de onde partimos num carro alugado em sistema de leasing até Paris.
Como gostamos muito de música – Rogério, inclusive, é baixista dos bons –, levamos alguns CDs de música brasileira, para ouvir durante o trajeto de cerca de dois mil quilômetros e aplacar possíveis saudades que nos perseguissem.
Quando estávamos próximos a Paris, Rogério teve a deferência de me passar a direção do furgão, a fim de que eu tivesse a honra de entrar dirigindo na Cidade Luz, que já havia visitado por outras vezes, porém sempre por via aérea.
Trocamos de lugar, e fiz questão de colocar no toca-cd do carro, já que eu estava no comando do possante, o disco de Tom Zé que selecionara para a viagem.
Na minha cabeça, a música de Tom Zé era o contraponto ideal para aquela cidade. Não um contraponto que opunha Terceiro a Primeiro Mundo; mas sim modernidade a tradição. Imaginava confrontar a música e a poesia em constante reboliço do músico baiano, com a arquitetura preservada da capital francesa e sua atmosfera clássica. Esta, com seu belo e sisudo aspecto; Tom Zé, com suas imagens inesperadas, seus versos ímpares, sua música surpreendente, ainda que calcada na mais profunda tradição nordestina.
Tenho em Tom Zé um dos nossos mais geniais artistas. Certamente, o mais desconcertante, inusitado e imprevisível. A não ser que a previsibilidade esteja justamente na sua constante invenção.
Meu primeiro contato com ele foi através da tevê da pensão de dona Dinorah, onde eu morava no final dos anos 60, princípio dos 70. O Tropicalismo estava iniciando e ele, com Gilberto Gil e Caetano Veloso, formava a Danadíssima Trindade do movimento.
Um pouco depois, no início de 1971, comprei meu primeiro long-play – o disco da época – de Tom Zé, que levei para casa. Era o homônimo Tom Zé, de 1970.
Por essa ocasião, ainda solteiro, morava com os primos Zé Fábio e Roberto Bedu e o amigo Zé Fernandes.
Como eu e Bedu gostássemos muito de música, compramos de sociedade uma boa aparelhagem de som, como se dizia, constituída de receiver, toca-discos, amplificador, equalizador e duas poderosas caixas Sonata Gradiente.
Cheguei ao apartamento, que estava vazio. Botei a bolacha para rodar, enquanto fui para o banheiro tomar as providências de praxe e, em seguida, tomar o banho.
Enquanto estava sentado placidamente no trono de todos os pobres, ouvindo atentamente o som que deixara a uma altura razoável para o pequeno apartamento, comecei a balançar a perna, automaticamente, acompanhando o ritmo de Guindaste a rigor, a segunda faixa do lado A da bolacha.
Propriamente a letra era à Tom Zé. Quer dizer, bem louca como sempre. E eu, ali, pelado, sentado no vaso, ouvindo e sacudindo a perna, compulsivamente arrebatado pelo balanço da música.
No final da canção, depois de desfilar dezenas de versos non-sense, porém seguro da força de seu ritmo, ele canta, como se profeticamente tivesse a certeza do comportamento do ouvinte:
Já parou de balançar as pernas
Já parou de balançar as pernas
Já parou de balançar as pernas
Já parou?
Senti ali uma sacanagem com a minha pessoa, desprevenida do jeito em que me encontrava: pelado, sentado no vaso sanitário, fazendo a coisa mais prosaica possível que o ser humano possa fazer, mas que não convém a ninguém ver e nem aqui vou dizer com as palavras próprias. E, por isso, fui conquistado por aquele artista iconoclasta, irônico, debochado, mas, sobretudo, genial.
Pouco tempo depois, após ter terminado meu curso de graduação em Letras, mantive minha matrícula aberta e me inscrevi em algumas matérias que me pareceram deficientes no meu currículo de Francês-Português, como Teoria Literária.
Lembro-me, perfeitamente, de que a então professora Diva Rocha dizia estar a boa e moderna poesia brasileira ligada à música popular. E destacava o valor de poetas não considerados pela intelligentsia acadêmica. Segundo sua opinião, os três maiores autores eram Chico Buarque, Caetano Veloso e Roberto Carlos.
Aluno já com o curso completo, tive a petulância de lhe dizer, na oportunidade, que concordava parcialmente com ela. Para mim, os três maiores eram Chico Buarque, Caetano Veloso e Tom Zé. Ela me respondeu, concordando, também em parte, reconhecendo o valor do compositor de Irará, mas que tinha preferência pelo texto romântico de Roberto.
Eu preferia (prefiro) o texto crítico, satírico, corrosivo, de Tom Zé.
Muitos anos depois, já no setor em que eu estava lotado, foi lá trabalhar um jovem interessado em música. Como reconheceu em mim um parceiro mais velho, mais experiente, estava sempre a puxar conversa. Até que eu lhe disse dessa minha preferência por Tom Zé. E ele ficou sem entender muito bem por que, raios, alguém que parecia ter certo juízo iria gostar assim daquele baiano maluco.
Certo dia, ele comentou com outros colegas, com algum estranhamento, através de uma frase que me ficou marcada na memória, esta minha preferência: “Saint-Clair gosta até de Tom Zé!”.
Quando a colega Josy veio contar-me o caso, dando boas risadas, fui até ele e lhe disse: Eu gosto, sobretudo, de Tom Zé.
Por isso tudo, é que quis fazer minha entrada triunfal na Cidade Luz, no comando de um carro, pela avenida que chega a Paris a partir de Blois, no Vale do Loire, com Tom Zé no carro. E não, qualquer música. Mas aquela que me tirou do sério no início dos anos setenta, Guindaste a rigor*:
 Já parou de balançar as pernas
Já parou de balançar as pernas
Já parou de balançar as pernas
Já parou?


Capa do elepê de 1970 (em hominiscanidae.org).

(*Se quiserem, podem ouvi-la em http://youtu.be/0eksDYn2Tmg.)

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