3 de agosto de 2012

DO TEMPO DO ONÇA

Há algum tempo (não muito, por certo!) publiquei no blog a postagem Lugares distantes, em que, de forma abreviada e superficial como é minha praxe, fiz um apanhado das expressões que denotam, nas frases, a noção de lugar. Aquilo que a gramática tradicional classifica como adjunto adverbial de lugar.

Como disse naquela oportunidade, pelo fato de ser interessado no fenômeno da linguagem, sempre vêm caraminholas linguísticas perturbar meu descanso remunerado de aposentadoria. Desta vez é a noção de tempo. E isto motivado por uma frase ouvida de pequeno falante de nossa mui bela língua.

Imagem em infoescola.com.

O tempo, do ponto de vista psicológico, pode ser bem diferente daquele que é medido pelo relógio e pelo calendário. As vinte e quatro horas do dia passam aceleradamente, caso você tenha muitos problemas a resolver, o que o leva a ansiar por um dia de vinte e cinco ou mais horas, por exemplo. Ao contrário, caso você esteja tranquilo, desfrutando de um ócio quase pernicioso – como se isso fosse possível –, é bem provável que aquelas mesmas horas lhe pareçam infinitas e maçantes. A este respeito, aliás, Millôr Fernandes tem uma frase excepcional, em que joga com a tensão entre essas duas percepções de tempo: “A cada mês, sobram mais dias no meu salário” (cito de memória).

No curso de Letras, aprendemos logo cedo a distinção entre o tal tempo psicológico – matéria básica da obra literária – e o tempo físico, astronômico, propriamente dito – aquele determinado para entrega dos trabalhos de literatura, por exemplo.

Mas a tradição da língua nos oferece algumas expressões interessantes, além dos óbvios hoje, ontem, amanhã, depois de amanhã, anteontem, trasantontem/ trasanteontem, agora, depois, logo, breve,, e por aí afora (Isto aqui não é aula de gramática!). Algumas dessas noções, lá em Carabuçu, dizíamos, por exemplo: onti, antonti ou antionti, tresantonti, istrudia (estoutro dia, há alguns dias) e dijaoje (hoje cedo, ainda há pouco).

As expressões que aqui me interessam estão impregnadas pelo caráter estilístico próprio de nossa língua. Vejam alguns exemplos e minhas impertinentes observações:

a) Tempo do onça – Época antiga e imprecisa, mas bem antiga, que nos remete a um país menos povoado por gente e mais por onças e outros bichos do mato. Ou será que a falta de concordância da expressão do onça é por que já é um aportuguesamento do inglês once upon a time?

b) Tempo do cagar de coque (de cócoras) – Tempo que precedeu à tecnologia do penico e, por consequência, à da casinha, à do vaso sanitário e, finalmente, à do water closet, com sua caixa de descarga ecológica, para xixi e cocô. Era também o tempo da frase “Vai cagar no mato!”, xingamento hoje muito brando, já que não inclui a progenitora do nosso adversário, como é próprio dos impropérios modernos. Às vezes, em determinadas situações e premido por certas circunstâncias intestinais que nem é bom lembrar, vamos da era da privada tecnológica ao tempo do cagar de coque num átimo. É só o intestino mandar!

c) Tempo em que se amarrava cachorro com linguiça – Tempo antiquíssimo que nos remete aos primeiros dias do Éden, antes de Adão e Eva fazerem a m*rda que fizeram. Naquela altura, até mesmo os animais carnívoros eram educados e se podia facilmente amarrar um cão com este tipo de corrente.

d) Tempo da Carochinha – Esse é um tempo em que até mesmo nossos avós, bisavós e tataravós eram criancinhas. Está lá perdido no meio daqueles livros de histórias infantis, na memória da gente. É tempo velho do tempo de nós meninos. Mais ou menos por aí. E talvez seja o que nos dá mais saudades.

e) Tempo do ‘derréis’ (dez réis) e do vintém – Tempo bom, em que “se vivia muito bem, sem haver reclamação”, como diz o samba famoso*. E não serei eu a contestar a afirmação do sambista. Contudo penso que este tempo caro à memória era concomitante ao que vem logo a seguir.

f)  Tempo de Dondom** – Também cheio de coisas boas, segundo o sambista, pois “nossa vida era mais simples de viver”, cheio de cortesias e de boas lembranças. Até de um jogador que ninguém conhece, de um time desconhecido, o Andaraí. O bairro é logo ali mesmo, e o tempo deve estar perdido em suas ruas e vielas. Pode ser que o tempo esteja a andar aí.

g) Naquele tempo – Expressão consagrada pela Bíblia, que dela faz muito uso, e é tradução do latim da Vulgata in illo tempore. Como os textos da Bíblia já são muito antigos, quando falam naquele tempo, deve ser coisa beirando o tempo da criação do mundo. Sei lá! Mas sempre soa como coisa antiquíssima.

h) Tempo do rei – Este é um tempo fácil de ser encontrado nos antigamentes: é de quando houve rei. Acabou-se o rei, findou-se o tempo. Ruy Castro o utilizou em um de seus livros: Era no tempo do rei***, em que fabula peripécias de um D. Pedro I na adolescência, reinando pelas ruas do antigo Rio de Janeiro, do tempo do rei.

i)  Tempo de D. João caroço – Já este tempo é indefinível, mas bem anterior ao do rei. Pelo menos é o que se sente da expressão. E do caroço de D. João.

j)  Tempo das vacas magras – Este é um tempo atemporal, individual ou coletivo. Pode ter sido ontem, há um mês, há um ano, há muito tempo. Há um borbotão de pessoas que ainda vivem no tempo das vacas magras e ainda não têm a perspectiva de escapar dele. Vejam, então, que é um tempo sem tempo definido. Como o do trabalhador brasileiro que, segundo a propaganda do governo, saiu dele, mas, conforme notícias atuais, para lá volta daqui a pouquinho.

k) Tempo do cinema mudo/do cinema preto e branco – Este é um tempo facilmente marcável. É só você ir à Wikipedia e ver lá. Não vou perder tempo com isso.

l) Tempo do rádio de rabo quente – Um pouco anterior ao tempo do cinema mudo. Os chamados rádios de rabo quente apareceram no princípio do século XX e eram a alegria das pessoas. O problema é que deviam ser ligados um pouco antes, para que esquentassem e começassem a espalhar seus encantos e maravilhas modernas no ar.

Finalmente volto ao motivo inicial que me despertou estas considerações.

Pois não é que ouvi, dia desses, um menino dizendo para o outro que o seu pai era velho “do tempo em que o papel higiênico não rasgava no picote”, como se tal grande avanço tecnológico tivesse sido conseguido há décadas. O colega se espantou, pensando tratar-se da coisa mais antiga do mundo. Onde é que já se viu o papel higiênico não rasgar no lugar picotado?! Aos dois parecia um despropósito. E o coleguinha ainda falou:

- Aê, mané! Seu pai é velho pra caraca!

Ou, como diria o grande José Cândido de Carvalho, “pratrasmente de muitos anos”.

Fico por aqui, pois meu tempo acabou!
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* Saco de feijão, de Chico Santana, gravado por Beth Carvalho no elepê Nos botequins da vida (RCA, 1977).
** Tempo do Dondom, de Nei Lopes, gravado pelo autor no cd De letras e música (Universal, 2000).
*** CASTRO, Ruy. Era no tempo do rei. 1. ed. Ed. Alfaguara Brasil, 2000.

(Publicado originalmente em Gritos&Bochichos, em 18/5/2012.)

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