10 de setembro de 2012

TRAIÇÕES CABOCLAS I

Você vive algumas décadas e pensa que conhece seus parentes. Ledo engano! É mais comum saber da vida de terceiros e quartos, do que da de seus parentes mais próximos.
Foi o que me aconteceu há pouco. Embora há anos tenha tido como que um sinal sobre possíveis comportamentos deletérios entre os Machado.
Tinha lá meus dezoito anos e estava conversando com minha avó Maína na pequena varanda de sua casa, diante da pracinha da vila. De cotovelos fincados na mureta do portãozinho de entrada, olhávamos o quase nenhum movimento da rua.
Súbito, ouvimos a gargalhada característica de meu avô Juquinha a duas quadras dali, cortando o silêncio daquela tarde tranquila. Minha avó interrompeu o que dizia, para comentar:
- Aposto que aquele velho safado está falando de mulher.
Sorri um tanto incrédulo e admirado do ciúme dela. Jamais me passara pela cabeça que Papai Juquinha - assim o chamávamos -, um homem simples, sério, magro, já um tanto alquebrado pela vida, de hábitos metódicos e com poucos dentes na boca, pudesse ainda despertar tal sentimento em minha avó. Ou melhor, que ele fosse capaz de qualquer atitude que desse azo a desconfianças deste quilate. Como convém a um neto, eu o tinha na conta de um velho sempre ajuizado.
Há pouco, no entanto, minha mãe - e filha dele - resolveu contar algumas passagens sob tal rubrica, peripécias que eu nunca sonhara fosse Papai Juquinha capaz de praticar.
Uma delas, por exemplo, quase acaba em tragédia empapada de sangue, bem ao gosto de Nelson Rodrigues.
Meu avô mantinha um calamengau presumivelmente secreto com certa mulher casada das imediações, dada a desfrutes de lençóis e travesseiros. Como se isto fosse possível numa vila que não chegava a três mil almas, muitas delas fofoqueiras até o cerne do ectoplasma.
Claro está que, mais dia, menos dia, tal saliência iria cair nos ouvidos da Maína, que nunca teve na vida a temperança como virtude.
E que providências ela resolveu tomar? Uma das piores: passou a mão na espingarda cano duplo, que meu avô usava para caça, decidida a partir para a casa da sirigaita. A sorte é que ele chegava no exato momento em que ela saía porta afora. Ainda na calçada, ele se agarrou à espingarda, que não conseguia arrancar das mãos poderosas da Maína, uma mulher tão ou mais forte que ele. Percebendo que não a venceria em força e disposição, porque ela estava movida pelo mais poderoso combustível humano - o ódio -, não teve alternativa a não ser pedir ajuda ao Valdemar Sapateiro, que tinha sua oficina de remendos bem diante da sua casa.
Num átimo, Valdemar abandonou sovelas e couros, para ir em socorro do vizinho. Acabaram os dois por se atracar com a minha avó e, assim, arrebatar-lhe a arma das mãos, não sem alguma dificuldade, pois o sapateiro também era de corpulência praticamente esquelética.
Ela entrou para casa, furiosa, e ele botou suas inexistentes barbas de molho.
Imagem em angelabeneguedes.blogspot.com.
Daquela vez foi por um triz, como se dizia à época.
A fúria dela, porém, não se aplacou. Como não tivesse levado a termo seu plano de matar a amante, engendrou outro ainda mais desesperado e trágico.
Foi até a farmácia e pediu ao dono, Francisco, que lhe fornecesse uma dose de veneno que pudesse liquidar com algumas formigas que apareceram em sua casa. O homem lhe deu o veneno num pequeno vidro, recomendando-lhe expressamente todo o cuidado em seu uso, sobretudo que ele ficasse fora do alcance da sua penca de filhos.
Alguns minutos depois um amigo comum, de nome Paulo Barbosa, conta ao farmacêutico sobre a história da espingarda e do desespero de dona Julinda, o nome da minha avó. De imediato, Francisco entendeu o plano suicida dela e correu até sua casa, onde já não se encontrava meu avô, que fora trabalhar.
O farmacêutico, então, solicita que ela lhe devolva o produto. Ela, de início, se recusa. Francisco vê a cena trágica armada diante de si, sobretudo a culpa que lhe caberia em contribuir por deixar órfãs aquelas crianças ali sentadas à mesa do almoço. Ele não queria ter este remorso pelo resto da vida. Sem saída, diz para minha avó que não sairia de perto dela nem um instante, enquanto ela não lhe restituísse o veneno. E pôs-se a andar atrás dela por todos os cantos da casa, por onde ela se movimentava.
Maína, vendo que o farmacêutico não arredaria o pé e ouvindo as ponderações este lhe fazia, esfriou a cabeça atormentada e devolveu o frasco a Francisco, que voltou aliviado à sua botica.
Desta vez, minha avó não matou nem se matou. E pôde continuar sua vida, lidando com as novidades que as futriqueiras de sempre lhe traziam com frequência.

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