22 de outubro de 2011

A MALA

(Para José Fábio Gomes Shuab.)

Corria o ano de 1972.

Aqui faço um parágrafo. Sempre quis começar um texto com uma frase como esta e não posso perder a oportunidade. Dá a impressão de que a história é antiga e que eu estava lá. E é isso mesmo. Portanto, continuemos!
Corria o ano de 1972. Meu primo José Fábio tinha sido transferido pelo Banco do Brasil da agência de Paracatu, em Minas Gerais, para a agência Centro do Rio de Janeiro, na Rua Primeiro de Março, onde hoje é o CCBB.

Quando aqui chegou, trouxe emprestada uma mala esquisita que só ela, em que acomodara parte de suas poucas tralhas de rapaz solteiro. Poucas vezes na minha vida vi uma mala feia como aquela. Hoje não saberia descrevê-la, mas gostaria de que você, leitor, acreditasse que ela era, de fato, muito estranha.
Por lá, meu primo deixara corações partidos, paixões de duas moças bonitas demais da conta – como dizem os mineiros. Mas também trouxe o coração miúdo de saudades da sua última namorada.

Um pouco depois de sua chegada, providenciou viagem de volta, com desculpa de devolver a mala esquisita ao amigo que a emprestara, mas o motivo maior era rever a morena que lá tinha deixado. Algum tempo depois, ela esteve em Niterói com os pais e pude ver que ele tinha seus fundados motivos para ficar na estrada entre Niterói e Paracatu. Era, de fato, uma garota muito bonita.
Nesta primeira viagem de retorno, José Fábio me convidou para acompanhá-lo, com o argumento de que eu conhecesse a cidade onde trabalhara tão logo saiu sua nomeação para o cargo de escriturário do banco (Nem sei se hoje existe ainda tal denominação.) e os amigos que lá ficaram. Isto ocorreria na Semana Santa daquele ano.

Até concordei com o convite, de início, mas, em cima da hora, desisti não sei por que razão. Tenho a impressão de que fiquei receoso de ficar chupando dedo, enquanto ele se penduraria no pescoço da namorada. No entanto, ficou para mim a incumbência de levar até a agência Centro a mala esquisita, pois dali sairíamos direto para a rodoviária.
Convidei nosso amigo comum José Fernandes, para ir até o centro do Rio, pois de lá faríamos algum programa naquela véspera de feriadão. José aceitou a proposta, mas não desconfiou de que eu pediria a ele para carregar a mala.

É claro que José Fernandes não aceitou. Aquela mala me lembrava, um pouco, a mala da música do Caetano Veloso, No dia em que eu vim-me embora: “Senti apenas que a mala de couro que eu carregava, embora estando forrada, fedia cheirava mal”. Obviamente que ela não fedia no sentido olfativo, mas era um desacerto no aspecto visual.

Assim não me sobrou alternativa a não ser carregar a dita mala esquisita. Saí da estação hidroviária da Praça Quinze de Novembro um tanto constrangido. Não tinha coragem de olhar as pessoas que vinham em sentido contrário, embora ninguém me conhecesse. Aqui quase ninguém conhece quase ninguém. Mais ou menos assim. Mas aquilo me constrangia.
Até que chegamos diante da entrada principal da agência Centro, que já havia sido a sede do Banco do Brasil, quando o Rio de Janeiro era a capital do país.

Não é muito relembrar que, por esta época, ditadura militar assanhada, ocorriam alguns atentados de grupos contrários ao regime, com explosões aqui e ali. Por isso é que, ao dar o primeiro passo em direção ao saguão da agência, os guardas levaram a mão ao coldre, numa clara atitude de desconfiança, motivada pela visão da mala. Parecia despacho de terrorista.
José Fernandes foi quem me chamou a atenção para a reação dos guardas. Eu cheguei a me assustar, porém lhes disse que estava procurando pelo primo Schuab, como ele era conhecido em seu ambiente de trabalho.

Um guarda me acompanhou até a mesa em que ele, naquele momento, atendia acionistas do Banco. Entreguei-lhe, aliviado, a mala esquisita e comuniquei que desistira da viagem. Para mim já tinha sido caminho extenso demais levar aquela mala de Icaraí ao centro do Rio de Janeiro, talvez viagem até mais penosa que a do Rio a Paracatu e seus 929 quilômetros de chão.
Imagem em rosaemchock.blogspot.com.

3 comentários:

  1. Há certos objetos que são verdadeiras excrecências. Você já ouviu falar no sapato skatamak (não sei se é assim que se escreve mas, no meu tempo de menino era assim que chamavam um determinado tipo de sapato)? Pois é, foi agraciado com um par dessa esquisitice. O bicho era tão feio, além de me machucar os pés de tão duro que era, que não tive alternativa senão perdê-lo. Mas que desculpa inventar para confirmar a perda? Não encontrando motivo plausível para tal artimanha, decidi que o melhor mesmo era dizer que o dito cujo sumiu. Mas sumiu como?, insistia minha mãe. Não sei, tinha deixado ele aqui ontem e hoje não o encontro mais. Pois é, tais objetos parecem terem sido construídos por algum mágico desajeitado, em começo no domínio dalguma arte do malfeito.

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  2. Você me fez lembrar de um sapato bicolor - marrom e branco -, tipo malandro, que também odiava, quando menino. Aí preferia andar descalço. Não tive o expediente de "perdê-lo".

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  3. Mestre, a mala em questão é o se pode chamar de verdadeira "mala!"

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