11 de outubro de 2011

POR UMA BOLA SETE

Só não parto sua cara, porque não sou parteiro!
Com esta frase estapafúrdia, Niquinho da Cremilda, baixinho de metro e meio, deu por encerrada a discussão com Nicão da Tonha, palmeando os dois metros, durante uma partida de sinuca no bar do Enéas, bem no centro da vila, a qual discussão tinha como raiz e fundamento o jogo entre o Soca-Terreiro e o Boa Esperança, times da derradeira divisão do campeonato brasileiro de futebol de várzea, naqueles idos de mil novecentos e dom João caroço.
Cada um defendia as cores de sua paixão: Niquinho, veloz, era o centroavante rompedor, enfiado na defesa; Nicão era o beque de espera, tipo assim de leão de chácara da defesa do Boa Esperança e cuja cara enfezada espantava mais que as caneladas distribuídas em quem se aventurasse em seus domínios na grande área.
Depois daquela frase lapidar, colocou o taco encostado à parede, quis saber quanto devia ao dono do botequim, porque não gosto de dever a ninguém, nem ao meu pai, pagou a conta e saiu bufando feito uma locomotiva a vapor, a resfolegar na saída da estação.
Não houve um que não se risse de quase rolar pelo chão com o destempero do baixinho.
Ele e Nicão – ambos Antônio de papel passado e água de batismo – eram amigos de longa data. Desde meninos frequentaram o Grupo Escolar Marcílio Dias, no alto do morro, na mesma série, com as mesmas professoras. Faziam os poucos trabalhos extraclasse juntos, na casa de um e de outro.  Quando adolescentes, chegaram ao cúmulo de se apaixonarem pela mesma menina de tranças duplas do final da rua do matadouro, a Tininha, filha de Januário e de dona Deolinda. Só não se casaram com ela, porque não era possível. E também Jorge Amado ainda não havia publicado Dona Flor e seus dois maridos. Aí Tininha resolveu entregar seu coraçãozinho tímido e desanuviado para o Duardo, filho do dono da sortida venda de tecidos e aviamentos perto da Praça do Sabiá.
Os dois seguiram seu companheirismo e agora, beirando os trinta, já eram tidos na vila como solteirões convictos, que viviam de frequentar a guaxa de Bom Jesus do Itabapoana, atrás das damas de preço acertado e cheiro de leite de rosas, que facilitavam seus guardados e pertences a uns e outros.
Só não concordavam em nada, quando o assunto era futebol, começando da primeira divisão do Rio de Janeiro, cujas partidas ouviam pelo rádio rabo-quente da marca Lancaster na venda do Argemiro, em volta do vidro de pés de moleque, até a rivalidade minúscula de Soca-Terreiro, da Fazenda do Jacó e sua camiseta listrada de azul e branco na vertical, e Boa Esperança, da fazenda do mesmo nome e seu uniforme grená com amarelo em listras deitadas. Aí não havia acordo, não havia companheirismo. Era cada um com sua opinião inabalável nas coisas inúteis da bola rolando, da cor da camisa, da bola que entrou ou não entrou nas traves de bambu de rede imaginária, porque ela triscou na moita de vassoura, porque não triscou, esbarrou foi na touceira de guiné do lado direito da trave. E assuntos assim eram discutidos até a próxima partida, até a próxima batalha campal em que, às vezes, se transformavam aquelas brincadeiras simples de gente simples do interior.
Por isso é que todos riram como cobertas velhas sendo rasgadas do destempero de Niquinho e chegaram até a calçada do bar a chamá-lo de volta, deixe de bobagem, homem, vocês são amigos desde o berço, são até irmãos de leite. De fato, um havia mamado na mãe do outro, porque a sua secara o leite bem durante o resguardo e ele correria o risco de não ver os são-joões vida afora.
Nicão que, fora do campo de jogo, era praticamente uma dama, como diziam os amigos, apesar do tamanho descomunal para aqueles tempos, ria que ria, sem se sentir ofendido, porque sabia que, daí a pouco, lá viria Niquinho se retratar, dizer que  tinha perdido as estribeiras, subido nas tamancas, por bobagem, que a nossa amizade vale mais do que tudo na vida, cê pode ter certeza disso, Nicão. E tudo voltava à paz, com a condição de que não voltassem a falar do pênalti marcado/não marcado, da bola que entrou/que não entrou, do placar final da última pelada disputada aguerridamente, daquele miserento juiz que não vê nada.
Nem bem chegou à esquina da venda do João Mestre, cinquenta metros adiante, a cabeça mais fria, Niquinho resolveu voltar, com a cara de tacho de sempre, a pedir desculpas ao amigo e aos demais que sapeavam o jogo de sinuca, ao Enéas, que, rindo da diatribe do baixinho, liberou uma rodada de Matinha para todos, em sinal de paz selada e molhada no gole da branquinha.
E Liberdade, naquele dia, viu evitada uma tragédia de consequências catastróficas: Niquinho da Cremilda e Nicão da Tonha trocarem de mal por uma bola sete encaçapada no meio, seguida de suicídio na caçapa do fundo, que dera a vitória ao grandão, que logo traçou paralelo com o jogo do domingo anterior com a vitória de virada do glorioso Boa Esperança de grená e amarelo, sobre o não menos glorioso Soca-Terreiro de azul e branco, feitinho um céu encarneirado de nuvens.

Foto de Gilson Camargo, em lisandronogueira.blogspot.com.

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