13 de novembro de 2010

UMA LACUNA BÍBLICA

Não me sinto muito à vontade para falar sobre assuntos bíblicos, porque posso ser mal interpretado. Tudo isso porque, há alguns anos, bandeei para o agnosticismo não praticante e sem pretensões de fazer proselitismo de nenhuma espécie. Nem mesmo quero que gostem dos mesmos legumes que eu, quanto mais que comunguem (viram aí o verbo insidioso?) de minhas ideias, que, aliás, têm muito pouca cotação no mercado geral das ideologias, filosofias e quejandos.
Mas a Bíblia (estou escrevendo com letra maiúscula para não ser acusado de desrespeitoso) é cheia de histórias exemplares. Ou não seria ela o livro sagrado de bilhões de cristãos!
O chamado Velho Testamento contém livros comuns à Torá dos judeus. Vários sãos os seus autores humanos (não vou discutir aqui a questão da inspiração divina em sua criação): há poetas, como Salomão e Davi; há contadores, certamente, como o autor do livro dos Números, canonicamente atribuído a Moisés, como os demais que compõem o Pentateuco.
Mas queria tratar aqui de uma história emblemática contida no Velho Testamento: a de Esaú e Jacó, e o golpe que Jacó aplicou em Esaú, com a participação de sua mãe, Rebeca. Particularmente acho que este episódio parece ter sido urdido por advogado mal intencionado ou detetive particular, com curso tirado por correspondência. Vou tentar resumi-lo, para chegar à conclusão a que me proponho.
Esaú e Jacó eram gêmeos. Porém Esaú nasceu primeiro, o que lhe dava o direito de primogenitura, condição determinante para os direitos sucessórios na ocasião: o primogênito herdava tudo. Os demais filhos que se lascassem. No entanto, Jacó era o queridinho da mamãe Rebeca. Vivia mais chegado a ela, nas lides domésticas, ao passo que Esaú era caçador, cuidava dos rebanhos e das propriedades da família, isto é, pegava no batente. Esaú era peludo, tipo Toni Ramos. Jacó, por sua vez, era mais lisinho, mais parecido com o Reinado Joãoneguim. Esaú era o cara, mas Jacó tinha o apoio da mãe. Quando o pai dos dois, Isaac, estava chegando ao fim da vida e já cego, mandou chamar Esaú, para dar-lhe a bênção da primogenitura e com isso passar para ele todos os direitos de sua casa e, consequentemente, de seu povo, vez que ele era o patriarca dos hebreus. Mas Rebeca quis proteger seu queridinho e fez uma proposta: faria um belo prato de lentilhas, o predileto de Esaú, que em troca deixaria o irmão receber a bênção. Esaú caiu na tentação da gula. A fim de que o plano desse certo, Rebeca confeccionou um casaco de pele de ovelha para que, ao tocar no filho, Isaac pensasse que o peludo era de fato Esaú e não Jacó. Assim foi feito. E a história do povo hebreu foi mudada em função disso. Jacó tornou-se o seu quarto patriarca. Esaú, embora tenha feito as pazes com seu irmão posteriormente, passou à história como um bobo, um tonto. Quero, então, que prestem atenção ao fato: Esaú trocou seu direito de primogenitura e, por consequência, a liderança do seu povo por um prato de lentilhas!

Pois muito bem! Esta história está contida no livro do Gênesis, onde ocupa vinte e cinco capítulos (do 25:19 ao 50:13). Evidentemente que com muito mais detalhes e pormenores, pois vai do nascimento à morte de Jacó. Porém o que me deixa triste até hoje, decorridos mais de dois mil e quinhentos anos de sua provável redação, é que seu autor, desgraçadamente, miseravelmente, não teve o cuidado de registrar a receita de prato tão poderoso, capaz de alterar a história de um povo. Não há a mínima referência a temperos, pertences e demais ingredientes, tempo de cocção, acompanhamentos, harmonização com vinho ou cerveja – bebidas que já existiam à época. Quero apostar com todos que, fosse o autor um francês de boa cepa, ou mesmo um português de Trás-os-Montes, nada disso iria escapar. E hoje teríamos um prato da gastronomia com valor canônico e pouco ou quase nenhum valor calórico.
Enfim nem sempre se pode ter tudo que se quer. Ficaremos, assim, com essa lacuna gastronômica do Gênesis ao Apocalipse, isto é, per omnia saecula saeculorum.

2 comentários:

  1. Fico a imaginar o pobre do Esaú, que devia estar enjoado de só comer carne de ovelha, deve ter babado quando viu aquele prato de lentilhas. Penso que no fundo ele queria mesmo era desfrutar dos pequenos prazeres desta vida.

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  2. E nós, como Esaú, nos perderíamos pela boca, também, né, guloso, mestre.

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