23 de novembro de 2010

NA JANELA (após a missa de sétimo dia)

(Imagem em pt.dreamstime.com)
Das Dores pensava na vida, com os cotovelos fincados no parapeito da janela, do apartamento simples, no bairro de Moneró, na mesma Ilha do Governador onde Carlão descansava eternamente, já no início da consumição pelos vermes da terra. Olhava descuidada para o pouco movimento do dia e não percebeu que um ciclista a chamava da rua. Era o Hipólito da mercearia, onde tinha uma conta pendurada, sem solução há mais de mês. Carlão havia prometido pagar na semana em que apareceu com sua história de defunto sem aviso prévio. Hipólito precisou aumentar o tom da voz, para que ela saísse daquela espécie de transe.
- Das Dores, preciso falar com a senhora.
Então ela disse que desceria num segundo, era só esperar que desse um jeito no cabelo e calçasse uma sandália.
Hipólito esbanjava certa viuvez há alguns anos: a mulher lhe faltara antes mesmo de dar filhos e ele se concentrou no trabalho de tal forma, que não se interessou por mais ninguém até então, pelo menos que alguém percebesse.
Em pouco tempo ela estava diante do merceeiro, que notou também o leve batom recém-passado sobre os lábios. Das Dores tinha o rosto bonito, embora estivesse acima do peso ideal das mulheres, como as mulheres sempre acham. Mas o corpo se delineava em formas arredondadas definidas. Não era simplesmente um monte de gente desarrumada. Bem lá no fundo, ela sabia que tinha também seu encanto, mas isso agora não lhe passava pela cabeça. O trauma da morte não anunciada de Carlão ainda pulsava em seu corpo.
- Pois não, Hipólito. Acho que já sei o motivo de sua vinda até aqui. É a minha dívida, não é?
Hipólito achou por bem não desviar a conversa dessa rota, porque via nela um pé firme para a verdadeira finalidade de sua visita.
Desde que Das Dores ficara viúva, ou coisa que o valha, porque o desabono de ser a outra logo se espalhou pela vizinhança do condomínio, Hipólito começou a imaginar coisas, a tramar “no seu cérebro nervoso”, como no velho samba-canção, “uma maneira de magoar seu coração”. Porém magoar no sentido positivo, de dar uma encostada jeitosa, nos moldes de serenata do muito antigamente, como um dia se fez na Ilha. E cuidou que o coração da viúva estivesse desamparado, a necessitar de alguém que lhe minimizasse as possíveis carências a se anunciarem. Pode-se dizer que essas ideias já pipocavam em sua cabeça, bem antes de o finado embarcar desta para melhor. Sempre que Das Dores passava por sua mercearia, ficava imaginando possibilidades com ela, tendo por base as ausências alongadas do – vá lá que seja! – marido.
- Pois é, Das Dores, vim para ver se podemos conversar sobre sua dívida, porque não quero deixar de fornecer para você e os meninos, logo agora nesse momento de aflição. Imagino o que você esteja passando, depois de tudo o que aconteceu. Os irmãos de seus filhos já procuraram você para acertar as coisas?
- O pior é que não, Hipólito! Disseram que acertariam as pendências, como um deles mesmo me falou, na hora em que eu estava desatinada, lá no cemitério da Cacuia, mas não apareceu ninguém. O Carlão, que Deus tenha compaixão daquele miserável, não deixou nada assegurado. Morreu no desaviso e os meninos ficaram ao desamparo. Agora estou começando a fazer salgadinhos para fora, pegando encomenda. Aliás, se você puder me ajudar e colocar um cartazinho na mercearia oferecendo meus serviços, vou ficar agradecida.
Hipólito não só concordou em colocar o cartaz, como também estabeleceu um contrato de fornecimento de salgadinhos, que passaria a vender na mercearia, para acompanhar as cervejas e os traçados. Seria bom para os dois essa parceria, disse-lhe com entusiasmo contido, a fim de que não espantasse a viúva.
Assim, à medida que os dias decorriam entre frituras e assados, a relação entre os dois ia-se firmando, enraizando, e, quando a desavisada Das Dores deu por si, estava de caso com o merceeiro, com sua despensa sempre fornida de mantimentos, os meninos agora muito bem amparados – melhor até que nos tempos de Carlão. Comadre Carlinda, amiga de todas as horas e sua confidente, aprovou o caso, garantindo que o merceeiro era pessoa bem-intencionada, cheio de amor para dar.
Não se passaram três meses da encomendação da alma do infeliz e já em sua cama aboletara-se o vendedor de comestíveis, com uma sem-cerimônia que deve ter deixado o espírito de Carlão rodopiando no éter, sem achar o rumo do paraíso ou da danação eterna, perdido entre as partículas magnéticas do Cinturão de Van Allen, parede-meia com o purgatório, mas bem perto também da porta das profundas, onde o coisa-ruim o estaria esperando.

Com a felicidade instalada em sua vida, Das Dores providenciou um jarrozinho de flores mimosas para o batente da janela, onde, um dia, olhando distraída a vida escorrer no asfalto da rua, viu seu futuro chegar pedalando uma bicicleta. E providenciou uma moita de espada-de-são-jorge na porta de entrada, em sinal de defesa do ambiente do lar, desde então. O espírito abusado de Carlão teria um contratempo à altura, caso se imiscuísse em seu novo caso amoroso.

Um comentário:

  1. Com um herói deste porte a cogitar-lhe paraísos, Das Dores bem que podia passar a chamar-se Felicidade.

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