9 de novembro de 2010

NO VELÓRIO


(Imagem colhida em flikriver.com.)

Das Dores entrou esbaforida na capela mortuária do Cemitério da Cacuia, acompanhada da escadinha de filhos ainda não entrados na adolescência. Chegou ao lado do caixão, onde se destacava a cara estanhada do Carlão e aplicou-lhe alguns tabefes de mão aberta, de fazer barulho até na cantina ao lado.

- Então é isso, né, Carlão, que você me apronta? Diz que vai visitar uma tia muito doente em Varre-Sai, some e aparece morto, com essa cara gorda aí cercada de flores? Essa é mais uma das suas, Carlão? Agora, pelo menos, é a última, não é, Carlão?! Não vai mais me aprontar umas e outras, seu cafajeste, seu traste imprestável!

Ao ouvir os gritos de Das Dores, os outros três filhos rapazes do defunto, que tomavam cafezinho na cantina, correram para a capela, a fim de apurar o que estava acontecendo.

A viúva oficial, de papel passado e tudo, mãe dos três, sentada do outro lado do ataúde, debulhava um compungido terço, no intuito de recomendar a alma do marido defunto à corregedoria celeste. Porém desmaiou ao ver a cena.

Os parentes mais próximos se atiraram sobre Das Dores e a imobilizaram, com certa dificuldade, diga-se de passagem, dado o volume com que ela resfolegava sua pessoa no mundo dos vivos. Seus filhos, também três meninos, ficaram em estado de choque, ao ver a mãe aplicar tais bolachas nas bochechas do pai, canela espichada, esperando a hora de virar comida de minhocas.

Com a chegada dos filhos rapazes, a parentada tratou de rebocar aquela estranha criatura desvairada para fora, sem, contudo, conseguir calar de sua boca um enxame de frases gritadas.

- Carlão, seu canalha! E, agora, como é que eu fico com as crianças, seu cretino? Sempre me dizendo que ia ver uma coisa e outra, uma tia doente, um cliente nervoso! Tava sempre viajando e era isso, Carlão? Com outra família, cheia de filhos, a mulher viva, seu desgraçado! Me soltem que eu quero meter a mão naquela cara de tacho, naquele salafrário! Me enganou a vida toda! Me tirou de casa, eu ainda virgem, boba, cheia de sonhos! Falou que era um viúvo tresnoitado, sem filhos, cheio de amor pra dar! Até meu pai caiu na sua conversa, Carlão! A mulher tinha morrido atropelada por uma ambulância, igual à Iracema do samba! Cachorro! Tinha idade para ser meu pai e eu acreditei em você, seu sacripanta! Se não fosse comadre Carlinda, possa ser que eu nem chegasse aqui a tempo, seu monte de banha!

Quanto para mais distante levavam Das Dores, mais o tom de sua voz aumentava, para que todos ali a ouvissem. Os três meninos, desamparados e confusos, acompanhavam o reboque da mãe para longe de onde seu pai dormia provisoriamente. Até que um dos filhos da viúva tida e reconhecida por todos percebesse o estado de choque de seus irmãos, desconhecidos para ele até aquele instante. Chamou-os de lado e tentou acalmá-los. Coitados, eles os mais vulneráveis.

Os outros dois, mais os parentes, tentaram, então, acalmar a mulher. Pediram-lhe para parar com o escândalo, falasse baixo, eles a ouviriam. Sua mãe não tinha necessidade de passar por mais um dissabor na vida, e logo na hora do velório do marido. Eles, por sua vez, lhe disseram que também tinham passado por poucas e boas. Seu pai se ausentava com frequência: era uma velha tia doente em Guiricema, um cliente malsatisfeito numa cidade longe a requerer sua presença. Problemas e problemas que se iniciaram quando ainda eram pequenos e que continuaram até que ele fez a passagem. Fossem conversar, depois, civilizadamente, para resolver todas as pendências que, reconheciam, deveriam ser muitas. Das Dores, no entanto, parecia possuída. Estava endemoninhada. E foi só se descuidarem, para que voltasse correndo em direção à capela, onde entrou atropelando pessoas e coroas de flores, acabando por derrubar o caixão, o morto e os castiçais.

Com a queda do finado do alto da essa, escaparam-lhe da boca as dentaduras duplas que iria levar para o além. E lá ficaram elas rindo da situação, Das Dores estirada no chão, a baderna instalada naquilo que deveria ser compunção e recolhimento. Até que a estupefação da cena fosse quebrada pelos gritos desesperados dos filhos mais novos:

- Mamãe, mamãe! Deixa papai morrer em paz!

Nesse momento, o espírito malquisto do Carlão rodopiou no ambiente cheirando a vela apagada, vazou pelo basculante entreaberto e tratou de cair fora, antes que sua carcaça oca baixasse à terra fria e as encomendas protocolares soassem estéreis aos ouvidos do Criador. E deixou para trás o pandemônio que construiu em vida.

Carlão sempre aprontando das suas!

2 comentários:

  1. Hihihi...esse Carlão era dos bons; e cara de tacho não ouvia faz tempo. Beleza!

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  2. O que depõe contra o Carlão é o falso moralismo. Fizesse igual alguns profetas do meio oeste americano e casado logo com dez ou doze sob o respaldo da Bíblia, tudo estaria resolvido.

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