17 de novembro de 2010

NA COPA (após o velório)

Das Dores estava agora derreada sobre a cadeira barata, encostada à mesa barata, compradas a prestação, na copa-cozinha apertada, azulejada de um azul triste e desbotado, tomando café requentado e pensando na vida.
(Em khepra.blogs.sapo.pt)
Depois de todo o furdunço que aprontara no velório de Carlão, diante da viúva oficial, dos filhos oficiais, dos amigos oficiais, não tinha mais coragem de se olhar no espelho, de encarar seus próprios filhos. Os olhos, inchados de tanto chorar, não tinham mais lágrimas: eram de uma secura só. Os meninos já tinham ido deitar-se, tristonhos, e ela estava ali pensando em como resolver a vida, a partir de então, sem a presença inconstante de Carlão. Era um traste, mas tinha sua serventia. E pensava no que lhe dissera a comadre Carlinda, depois do enterro daquele arremedo de marido: “Pior só, do que mal acompanhada, comadre Das Dô”. Nunca passara necessidade, é verdade, embora tudo lhe fosse contado, pesado e medido. Os meninos vestiam-se singelamente, como ela, estudavam em escola pública e ganhavam presentes apenas no aniversário e no Natal, mas tudo coisa sem brilho, sem encanto.
Ela não queria sentir-se desamparada, não podia sentir-se desamparada, mas estava chegando à conclusão de que a sua vida e a dos filhos, dali por diante, seriam de privações. Como fazer para lhes dar alimento, roupas, um mínimo de lazer, como tudo de minguado que vinha de Carlão?
Às vezes, quando ele voltava das viagens constantes, ora na função de representante comercial, ora na visita a uma doente tia moradora de Varre-Sai, Guiricema, sabe-se lá onde – tudo uma mentirada só –, ainda lhe trazia um queijo curado, um quilo de linguiça apimentada do açougue do Salvador e um pacotinho de doce de leite Xamego Bom, escrito assim mesmo com erro de grafia, mas que as crianças comiam lambendo os beiços, como se diz. Quem, agora, teria essas simplórias atenções para com ela e Dudu, Dondinho e Didigo, jeito carinhoso como chamava os filhos, assim que abria a porta da sala, antes mesmo de tirar a roupa com que viajava, apresentando-lhes o pacotinho daquela delícia que se desmanchava na boca?
Sua vida com Carlão tinha sido tocada em marcha lenta e aos solavancos, como uma velha jardineira desorientada a percorrer estradas de chão do interior, por onde ele dizia que andava. Agora, jardineira quebrada à beira do mato, o mundo apresentava-lhe novos meandros escuros e lamacentos por onde caminhar, por onde conduzir a vida, rebocando a família destroçada, à procura de um tal futuro, propagado pelos meios de comunicação e nunca vislumbrado com nitidez por ela.
(Em angelofabluesky.blogspot.com)
Teria de tirar forças de um buraco no fundo do seu ser, que não sabia onde estava, nem tinha conhecimento de que existisse. Mas, deixa estar, nasceria dali uma nova Das Dores, completamente diferente, disposta a tudo, capaz pegar touro a unha, dar tapa em cara de vagabundo e não temer mais nada. Era a sua disposição. Pensando assim, começou a chorar, dobrou-se sobre a mesa pobre, que molhou com suas lágrimas, e adormeceu mansamente.
O dia seguinte estaria rugindo à sua porta, a pouco mais de seis horas, a exigir o cumprimento de todas as decisões. Ou a vida seria uma equação irresolúvel!

2 comentários:

  1. É meu amigo, a vida esuas (das)dores! Trenzinho bom aquele xameguinho, a boca tá cheia d'água aqui.

    ResponderExcluir
  2. Já que a vida é um mar de lágrimas, só me resta comprar um barco.

    ResponderExcluir