26 de novembro de 2010

COM LICENÇA, NELSON RODRIGUES!

(F. Botero, A cama II.)

O casal era desproporcional. Fez-me lembrar personagens do grande Nelson Rodrigues: a Vizinha Patusca e o Sobrenatural de Almeida. O que abundava em tecido adiposo na mulher sobrava no outro em “pele e osso simplesmente, quase sem recheio” (com todos os direitos autorais reconhecidos e preservados). Perto dela, o marido parecia apenas manifestação espiritual, eflúvio da alma.
Adentraram o restaurante como um cargueiro adentra o porto: o rebocador pequetito a puxar pela mão aquela aberração. Sistema a peso, pensei no prejuízo que o marido teria ao pagar a conta da comida a sustentar toda aquela ostentação de gente. Obviamente ela não era manutenida a água e luz. É que há umas pessoas por aí que se alimentam de luz, coisa que não consigo imaginar o que seja. Será que nasceram com um terminal de tomada em alguma parte do corpo?
Mas voltemos ao casal. Fiquei curioso em observar a quantidade a ser servida por cada um. E vejam como a maledicência humana paga por ser apressada: espartanamente, o prato da gorda era um primor de decência; o do magrelo, um despautério. A imaginação começou a voar. Imaginei, então, que ele talvez fosse cavalheiro e estivesse levando o prato da mulher, para que nenhum comensal partidário de uma dessas seitas que pugnam por se comer assim ou assado, sem medo de leis antidiscriminação, pudesse ofendê-la. Mas não foi nada disso.
O magrelo instalou diante da sua pessoa aquela maquete culinária da Cordilheira do Himalaia e começou a devorar todos os picos, do mais baixo ao culminante. A gorda – fiquei até com pena dela – mastigava, não sei quantas vezes, porções miligrâmicas de verdes e brotos, de legumes cozidos na água e sal e filezinho de truta grelhado. Ela, aí sim, espartanamente, comia sua ração dietética regada a água sem gás. O magrelo mal e porcamente mastigava. Como que apertava a comida com a língua e a engolia à moda dos patos. Empurrava o bolo com goles caprichados de cerveja. Não ouvi, mas presumo que tenha arrotado várias vezes, tal era sua voracidade. O magrelo era abusado para comer! Vai comer assim nos quintos dos infernos!
Como não sou parente ou agregado que os acompanhasse, tive que ficar, ao final da comilança, sozinho no meu canto do restaurante, agora fazendo suposições para o que viria. Ele, naturalmente, beberia doses e doses de bicarbonato de sódio, acompanhadas de antiácidos e tinturas repulsivas para o bom funcionamento do fígado. Ela, tranquilamente, chegaria a casa, leve, apesar de tudo, e dormiria o sono dos previdentes.
Nada disso, meus amigos! O magricela do marido aboletava-se na poltrona da sala, diante do televisor, para palitar os dentes e futucar a unha do dedão do pé, sem a menor pressa, aguardando a pobre esposa fazer chás e infusões, no intuito de aliviar o afrontamento de gases estomacais. O descarnado era possuidor de um rotorooter gastrointestinal, capaz de processar qualquer coisa.

Vejam vocês como a natureza é sábia: aparelhou o magrelo com todos os instrumentos internos em pleno funcionamento, para que ele se nutrisse competentemente, uma vez que os embates de lençóis e travesseiros, a varar a noite, requeriam toda a força do mundo!

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