Ao morrer meu tio Herson Schuab, no mês de junho passado, senti que desaparecia o terceiro pilar de uma construção muito importante de minha vida, iniciada naquilo que se convencionou chamar tenra idade (Mesmo eu, já sexagenário com todo respeito, tive tenra idade!): a do bom humor. Antes já haviam partido os outros dois: tio Aureliano Azevedo, o Aurélio, e Crival Assis, o Crevalzinho.
Quando menino, apreciava muito o jeito bem-humorado dos três, e com eles aprendi que podemos viver a vida com uma visão positiva, sem que os problemas possam se agigantar além da conta. Nunca os vi de cara amarrada, tratando as outras pessoas com indelicadeza ou maldizendo a existência. É claro que, mesmo numa vilazinha de interior, décadas atrás, havia problemas de toda grandeza a serem suplantados. Como criança, porém, só percebia o que eles tinham de alegria e bom humor.
Meu tio Herson, a despeito da vida dura que levou como pequeno agricultor, era dono de uma das gargalhadas mais contagiantes que vi e, dos três, foi o que sobreviveu por mais tempo: morreu pouco antes de completar noventa e um anos, sem jamais ter deixado de apreciar uma boa cachaça de alambique.
Certa época, morou com a família enorme – tia Alda, mais os filhos Zé Fábio, Tereza, Maurício, Carmem, Tubiba, Betinho, Rita, Paulinho e Elcinho – na metade da subida da Serra da Cachoeira Alegre, em uma casa grande sobre-erquida no meio de um terreirão, cercado por muitas árvores frutíferas.
Alguns fins de semana, subíamos a pé a estrada, numa caminhada longa, para desfrutar das brincadeiras que armávamos lá, aquela montoeira de primos barulhentos. Ao chegarmos, ele estava sempre na roça, trabalhando, e, quando dava a hora do almoço, havia sempre alguém querendo tocar o berrante, para chamá-lo para comer. O som do berrante ecoava por entre as grotas e as grimpas dos morros em volta, quebrando o silêncio da natureza, quase sempre feito de barulho de bandos de maritacas.
Às vezes, ficávamos tentando adivinhar por que trilha viria o tio Herson, que sumia e aparecia entre o verde da paisagem.
Tempos depois, mudou-se para a Vala, já mais próximo à vila, o que facilitava nossa ida até sua casa. Mas aí já éramos maiores, mais crescidos, alguns já rapazes, e sempre que possível íamos para o valão tomar banho, levando sabonete e tudo. Após nos ensaboarmos, com o corpo branco de tanta espuma, pulávamos n’água para enxaguar. Alguns meninos se banhavam nus; os mais crescidos, de calção. Mas era tudo uma festa só. Sempre o tio Herson nos acompanhava, para cuidar daquela molecada despreocupada com o futuro.
Anos mais tarde, já aposentado, mudou-se para a vila. Aí já éramos todos homens feitos, os filhos a lhe darem netos; os netos, bisnetos; os sobrinhos, mais sobrinhos, o que só fez aumentar ainda mais o bulício na casa que sempre nos acolheu com alegria e com carinho.
Insidiosamente, porém, a saúde, que até então era moldada a ferro, começou a titubear, a vacilar, e foi aprontado para o tio Herson esses achaques que nos deixam periclitantes, vendo aproximar a indesejada. Até que no dia dezenove do dito mês de junho, ele nos deixou, tão placidamente quanto um pequeno pássaro, quando some no azul do céu. Dormindo, dormindo ficou, para sempre.
Durante o velório, como a marcar sua queda final, um meteorito passou riscando o céu límpido daquele finzinho de outono, em sinal de despedida, indo cair a alguns quilômetros dali.
No momento de levar seu caixão à terra no cemiteriozinho de Carabuçu, já noite iniciada, falaram seu sobrinho Alcione, seus filhos Paulinho e Zé Fábio.
Zé Fábio começou assustando a todos que ainda ali permaneciam:
- Acorda, Herson! – gritou ele, para continuar – Era assim que, ultimamente, eu brincava com ele, ao chegar a casa. Ele estava sempre cochilando na cadeira. Mas ficava chateado e dizia que não dormia, que estava acordado, o que sabíamos que não era verdade. Notávamos que estava debilitado, com as forças a lhe escaparem, mas nunca reclamou de dor. Ele não sentia dor. Sentia alguns incômodos. Dor, não! Reclamava bastante era do frio. Às vezes, brigava com a Tereza, que teimava em abrir a janela, quando ele a queria fechada, por causa do frio que entrava. Agora, ele está aí.
E terminou de uma forma dramática, emocionada, que nos fez chorar a todos:
- Agora pode dormir, Herson!
E se, naquele momento, o que eu pretendia falar em homenagem ao meu tio querido foi suplantado pelas palavras doídas do primo Zé Fábio, aqui o faço, em letra de forma, para que fique gravado e não se apague.
Ao voltar para sua casa, após o sepultamento, cada um de nós tomou um trago de cachaça em sua honra.
Obrigado, tio Herson! Valeu!
Que lindo!!
ResponderExcluirMeu querido amigo Saint-clair,
ResponderExcluirseu Herson, Crevalzinho (meu pai), e tio Aurélio além de outras pessoas tão queridas, foram nos deixando aos poucos e também aos poucos foi se formando um imenso vazio naquela terrinha tão querida. Foram morar num lugar chamado saudade, no qual guardo todas as boas lembranças que tenho da vida, e olha que esses "caras" tiveram um lugar reservado só para eles. Que pena que se foram!
Quantas vezes bati papo com seu pai sentado na porta do bar do Mansur. Ele sempre foi muito atenciosocom os mais jovens.
ExcluirJusta e comovente homenagem a um antepassado que foi buscado por uma estrela cadente.
ResponderExcluirFoi emocionante através das suas palavras, vivenciar o momento, aonde as pessoas se despediram para deixar meu avô dormir... pena não estar lá...
ResponderExcluirfelicidade hoje...poder ouvir, e ler os seus contos...
Bela homenagem, minou água nos zóios...
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