- Pegue seus panos de bunda e ponha-se daqui pra fora!
A mulher chegara ao seu
limite. E quando assim se expressa é porque o caldo havia entornado
definitivamente.
Ele tinha saído no sábado,
antes do almoço, vestido de índio: saiote de penas falsas sobre a sunga preta,
cocar de tosca feitura e as armas fingidas nas mãos: uma machadinha de madeira
e um pequeno arco com sua flechinha de bambu. Completavam a caracterização umas
tiras de esparadrapo à guisa de pintura tribal. O objetivo era participar da
abertura do Carnaval de Niterói, tradicionalmente feita pelo bloco Filhos da
Pauta, criado pelo pessoal da Imprensa da antiga capital do Estado do Rio de
Janeiro. Exatamente ao meio-dia do sábado, após concentração na Praça da
República, os foliões percorriam, ainda com parte do comércio aberta, a Avenida
Amaral Peixoto, em direção à estação das barcas, na Praça Arariboia. Após o
desfile, tudo terminava em libações alcoólicas de varar relógios e romper chão,
de não sair jornal no dia seguinte.
Ele não percorreria mil
metros, entre sua casa, na confluência da Mister Cunditt com a Padre Anchieta, e
a concentração, marcada para as onze horas em ponto. No Brasil, Carnaval é o
único evento que obedece rigorosamente ao horário e para o qual não há
defecção: ninguém se atrasa, ninguém falta. Contudo, a trabalhar contra todos
os seus planos, uma profusão de botequins pontuava o trajeto entre os dois
pontos. E, na empolgação da folia anunciada, ele foi calibrando, em cada um
deles, seu esqueleto fantasiado.
Aqui e ali encontrava
foliões que salpicavam as calçadas e a Praça do Rink. Os dois bares em diagonal
na esquina da Quinze de Novembro com Andrade Neves regurgitavam de fregueses,
todos com o espírito momesco saindo pelos poros, bem como algumas emanações de
álcool. Ele parou no primeiro, à esquerda da esquina, porque reconheceu no arlequim
tristonho seu vizinho do andar debaixo. Chegou eufórico, saltitante, mas foi
recebido sem entusiasmo: o vizinho enchia a cara porque estava realmente triste.
Aquilo não era uma fantasia de Carnaval, mas um disfarce para sua dor de amor: a
namorada lhe dera um perdido, três dias antes, e se mandara para Cabo Frio, com
a mala cheia de miçangas, paetês e más intenções, fora a bolsa repleta de
maquiagem, os biquínis, cada um menor que o outro, e duas ampolas de
lança-perfume argentino compradas a um muambeiro conhecido, que ele mesmo lhe
apresentara. Diante daquele quadro, não teve dúvidas, pediu que o garçom lhe
servisse um conhaque Dreher e um chope, para compartilhar o sofrimento do
amigo. Brindaram, ele ouviu as lamúrias do cara, não soube dar conselhos ou
orientações, mas se dispôs a beber com ele, como se bebessem a um morto
ilustre. Veio mais um conhaque, com algumas viradas de chope, enquanto o amigo
amaciava a dor a poder de steinhaeger versus cerveja preta, uma
combinação improvável, de consequências imprevisíveis.
Algum tempo depois, após se
despedir do vizinho, atravessou em diagonal a esquina e aportou no outro bar,
onde encontrou o Tucano, fantasiado de índio pataxó, que com ele combinara sair
no Filhos da Pauta, em homenagem a Arariboia. Iriam honrar a memória do índio
temiminó que ajudara os portugueses a expulsar os franceses do Rio de Janeiro
há centenas de anos. Não fosse esse heroísmo do índio, hoje não haveria
Carnaval no país. Talvez todos estivessem dançando um minueto.
Tucano, ao vê-lo atravessar
a esquina, já providenciara mais um copo e lhe serviu uma cerveja estupidamente
gelada, que seria acompanhada com lances de genebra e lascas de testículos de
boi empanados, de modo a forrar o estômago e prepará-los para as refregas
anunciadas. Do lado de fora do bar, na calçada da Quinze de Novembro, um grupo
cantava sambas de antigos carnavais, com acompanhamento competente de
instrumentos de percussão. O ambiente convidava. E eles acabaram ficando ali
por bom tempo. Até que decidiram partir em direção ao ponto inicial do desfile,
aonde chegariam em menos de quinze minutos, não fosse ter encontrado no bar da
esquina das ruas Doutor Bormann e José Clemente seu velho amigo e conterrâneo
Ferreirinha, frequentador assíduo do lugar.
Ferreirinha era um tipo
sistemático, desses de antigamente, cheio de liturgias, que só bebia em pé,
umbigo encostado ao balcão, junto à porta que dá para a José Clemente, lugar
estratégico para bater a cinza do cigarro queimado com frequência. Era comum
vê-lo ali sempre aos sábados, das onze às quatorze horas, como se fosse um
compromisso a que não pudesse faltar, mesmo se chovesse canivete. É que
Ferreirinha morava num apartamento acima do bar, postado no térreo de seu
prédio. Ferreirinha estava sempre vestido como se fosse trabalhar: calça de
linho, camisa de cambraia de cor única, sapatos lustrados, cabelo sustentado a poder
de creme de pentear, novidade que substituiu a velha brilhantina, e barba bem
escanhoada. No Carnaval, contudo, se permitia alguma alegoria: uma camisa
riscada e um chapéu de palhinha branca, com fita azul da cor da Portela, sua
escola do coração. E mais nada! Nem ruído carnavalesco Ferreirinha produzia:
parecia uma imagem de televisor sem som.
Os dois fantasiados
atravessaram a rua para falar com Ferreirinha. Tucano não o conhecia até então,
momento em que foi apresentado e teve ciência de uma breve biografia do portelense
discreto passada pelo amigo, com tantas e tais peripécias inusitadas, que
Tucano não pôde acreditar, já que ações e ator pareciam não se coadunar, não fazer
par. Ferreirinha, bonachão, sorriu um tanto amarelo e ofereceu cerveja aos
dois. Eles, embora já atrasados, não podiam fazer desfeita ao amigo e esticaram
as goelas e as conversas, fisgaram moelas e fígados de galinha, lembraram
outras tantas trapalhadas de adolescência e juventude na Miracema saudosa e
deram boas gargalhadas com o Ferreirinha. O entusiasmo aumentou, e resolveram
adereçar a cerveja com bicadas de Fogo Paulista, porque o Carnaval prometia.
Tudo pelo Rei Momo!
É preciso não se perder no
périplo dos dois. Este narrador está atento, porque o desfecho da história
compensa o sacrifício.
Assim que deram por fechada
a conta e passada a régua com o amigo sistemático, os foliões prometeram-se
solenemente seguir direto para a concentração, sem mais delongas. Para a
concentração, não, porque àquela altura o bloco já estaria chegando às
imediações da Galeria Gold Star, na metade da passarela, bem defronte à Caixa
Econômica. Melhor, então, que adentrassem a galeria pela Rua da Conceição, para
já sair direto em pleno desfile apoteótico da turba resoluta, que não estava
nem aí para o sol escaldante daquele sábado de verão.
Foi entrarem no corredor da
esquerda e perceberem o som da bateria lá longe. Tucano ponderou que o bloco
ainda deveria estar no esquenta na concentração, o que lhes dava ainda tempo de
tomar outra num dos dois botequins internos, sugestão que ele achou bastante atinada,
de modo que foram encostar-se ao balcão do bar. Desceram dois chopes com
colarinho, e mais dois, e outros dois. O som da bateria foi ficando cada vez
mais fraco, mais distante, menos perceptível. No quarto ou quinto chope, já não
ouviam mais nada e resolveram, então, dirigir-se à Praça da República, porque
imaginaram tratar-se da preparação para o início triunfante do desfile. Nessas
ocasiões, sempre se faz um silêncio respeitoso, alguns até com orações, pedidos
aos orixás, antes do primeiro ronco da cuíca.
Como os dois já não
estivessem deliberando em seu juízo perfeito, não perceberam que o bloco já
passara, já tinha chegado à Praça Arariboia e se dispersara ao fim da gloriosa
abertura do Carnaval da cidade. Na praça da concentração, indagaram de uns e
outros que por ali restavam e souberam que o bloco saíra exatamente ao
meio-dia, como programado, e que, àquela altura, já depois das quinze horas,
eles só encontrariam alguma fuzarca na Avenida Visconde do Rio Branco, para
onde o desfile embicou.
Saíram, assim, os foliões
retardatários na direção indicada, cortando caminho por entre ruas paralelas à
Avenida Amaral Peixoto, atravessando o Jardim São João, de modo a pegar o
refugo do bloco na altura da Marechal Deodoro.
E já não acharam mais nada.
Os foliões se dispersaram pelos bares da redondeza, uns aqui, outros ali;
alguns com seus instrumentos; outros levando alegorias de mão; todos suados,
esfalfados, necessitados de repor líquido antes que se desidratassem. Os de
maior poder aquisitivo foram para o Caneco Gelado, na Marquês de Caxias;
outros, para os bares e restaurantes do Mercado São Pedro; e todo o resto se
espalhou pela infinidade de bares, botequins e biroscas das redondezas.
Os dois amigos não se deram
por vencidos e resolveram esticar o desfile frustrado na mesma batida dos
demais foliões. E saíram de botequim em botequim, de bar em bar, pelo resto da
tarde, princípio da noite, alta noite, madrugada funda, cantando “Mamãe eu
quero”, “Você pensa que cachaça é água”, “As águas vão rolar”, e por aí afora.
Neste ponto, o narrador não
conseguiu mais ser testemunha do que se passou. Só mesmo na manhã da
Terça-feira Gorda, três dias após, é que flagrou a chegada daquele um a casa,
todo estropiado, recendendo a álcool, com a machadinha e o arco e flecha desconjuntados
à mão, cumprimentado a mulher, como se voltasse do trabalho, trazendo sua maleta
007 na mão. E ouviu em alto e bom som, para que não se fizesse de desentendido,
a frase fatídica:
- Pegue seus panos de bunda
e ponha-se daqui pra fora!
E não houve argumento,
explicação, pedido de desculpas que a demovessem da sentença proferida. A casa
era dela, a mobília era dela, as contas ela pagava; e ele era apenas o traste
que ela imaginara servir de parceiro. Ele, então, pediu que pelo menos pudesse
tomar um banho, escovar os dentes, fazer a trouxa e sair. Ela, magnânima,
consentiu, informando que iria ao apartamento da amiga logo abaixo do seu,
ficaria lá por cerca de meia hora e, ao voltar, não queria mais vê-lo.
Ele cumpriu seu ritual, pôs
as roupas numa mala velha de outros carnavais e saiu deixando a porta
encostada.
À noite, a mulher foi para o
baile de encerramento do Carnaval de Niterói no Clube Canto do Rio, acompanhada
da vizinha do andar de baixo, e cantou a plenos pulmões a liberdade que Momo lhe
proporcionava:
igual àquele que passou
Eu não brinquei
Você também não brincou”.*
Imagem colhida na Internet.
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Muito bom ...acompanhei vendo e imaginando cada momento...sendo carnavalesca já vi Ferreirinhas e tantos outros e várias esquinas dos dias 4 dias de folias. Parabéns ao escritor.
ResponderExcluirObrigado, Erica Faria, pela leitura e o comentário. Sei bem de sua relação com o carnaval: bem carnal mesmo. Um beijo!
ExcluirMagnifico, Saint-Clair! Passeei por Niteroi e ri, ri muito!!!!
ResponderExcluirObrigada!
Mais uma vez, Eliana, obrigado por sua leitura e seu comentário!
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