16 de abril de 2021

HISTÓRIA DE UM CARNAVAL

 - Pegue seus panos de bunda e ponha-se daqui pra fora!

A mulher chegara ao seu limite. E quando assim se expressa é porque o caldo havia entornado definitivamente.

Ele tinha saído no sábado, antes do almoço, vestido de índio: saiote de penas falsas sobre a sunga preta, cocar de tosca feitura e as armas fingidas nas mãos: uma machadinha de madeira e um pequeno arco com sua flechinha de bambu. Completavam a caracterização umas tiras de esparadrapo à guisa de pintura tribal. O objetivo era participar da abertura do Carnaval de Niterói, tradicionalmente feita pelo bloco Filhos da Pauta, criado pelo pessoal da Imprensa da antiga capital do Estado do Rio de Janeiro. Exatamente ao meio-dia do sábado, após concentração na Praça da República, os foliões percorriam, ainda com parte do comércio aberta, a Avenida Amaral Peixoto, em direção à estação das barcas, na Praça Arariboia. Após o desfile, tudo terminava em libações alcoólicas de varar relógios e romper chão, de não sair jornal no dia seguinte.

Ele não percorreria mil metros, entre sua casa, na confluência da Mister Cunditt com a Padre Anchieta, e a concentração, marcada para as onze horas em ponto. No Brasil, Carnaval é o único evento que obedece rigorosamente ao horário e para o qual não há defecção: ninguém se atrasa, ninguém falta. Contudo, a trabalhar contra todos os seus planos, uma profusão de botequins pontuava o trajeto entre os dois pontos. E, na empolgação da folia anunciada, ele foi calibrando, em cada um deles, seu esqueleto fantasiado.

Aqui e ali encontrava foliões que salpicavam as calçadas e a Praça do Rink. Os dois bares em diagonal na esquina da Quinze de Novembro com Andrade Neves regurgitavam de fregueses, todos com o espírito momesco saindo pelos poros, bem como algumas emanações de álcool. Ele parou no primeiro, à esquerda da esquina, porque reconheceu no arlequim tristonho seu vizinho do andar debaixo. Chegou eufórico, saltitante, mas foi recebido sem entusiasmo: o vizinho enchia a cara porque estava realmente triste. Aquilo não era uma fantasia de Carnaval, mas um disfarce para sua dor de amor: a namorada lhe dera um perdido, três dias antes, e se mandara para Cabo Frio, com a mala cheia de miçangas, paetês e más intenções, fora a bolsa repleta de maquiagem, os biquínis, cada um menor que o outro, e duas ampolas de lança-perfume argentino compradas a um muambeiro conhecido, que ele mesmo lhe apresentara. Diante daquele quadro, não teve dúvidas, pediu que o garçom lhe servisse um conhaque Dreher e um chope, para compartilhar o sofrimento do amigo. Brindaram, ele ouviu as lamúrias do cara, não soube dar conselhos ou orientações, mas se dispôs a beber com ele, como se bebessem a um morto ilustre. Veio mais um conhaque, com algumas viradas de chope, enquanto o amigo amaciava a dor a poder de steinhaeger versus cerveja preta, uma combinação improvável, de consequências imprevisíveis.

Algum tempo depois, após se despedir do vizinho, atravessou em diagonal a esquina e aportou no outro bar, onde encontrou o Tucano, fantasiado de índio pataxó, que com ele combinara sair no Filhos da Pauta, em homenagem a Arariboia. Iriam honrar a memória do índio temiminó que ajudara os portugueses a expulsar os franceses do Rio de Janeiro há centenas de anos. Não fosse esse heroísmo do índio, hoje não haveria Carnaval no país. Talvez todos estivessem dançando um minueto.

Tucano, ao vê-lo atravessar a esquina, já providenciara mais um copo e lhe serviu uma cerveja estupidamente gelada, que seria acompanhada com lances de genebra e lascas de testículos de boi empanados, de modo a forrar o estômago e prepará-los para as refregas anunciadas. Do lado de fora do bar, na calçada da Quinze de Novembro, um grupo cantava sambas de antigos carnavais, com acompanhamento competente de instrumentos de percussão. O ambiente convidava. E eles acabaram ficando ali por bom tempo. Até que decidiram partir em direção ao ponto inicial do desfile, aonde chegariam em menos de quinze minutos, não fosse ter encontrado no bar da esquina das ruas Doutor Bormann e José Clemente seu velho amigo e conterrâneo Ferreirinha, frequentador assíduo do lugar.

Ferreirinha era um tipo sistemático, desses de antigamente, cheio de liturgias, que só bebia em pé, umbigo encostado ao balcão, junto à porta que dá para a José Clemente, lugar estratégico para bater a cinza do cigarro queimado com frequência. Era comum vê-lo ali sempre aos sábados, das onze às quatorze horas, como se fosse um compromisso a que não pudesse faltar, mesmo se chovesse canivete. É que Ferreirinha morava num apartamento acima do bar, postado no térreo de seu prédio. Ferreirinha estava sempre vestido como se fosse trabalhar: calça de linho, camisa de cambraia de cor única, sapatos lustrados, cabelo sustentado a poder de creme de pentear, novidade que substituiu a velha brilhantina, e barba bem escanhoada. No Carnaval, contudo, se permitia alguma alegoria: uma camisa riscada e um chapéu de palhinha branca, com fita azul da cor da Portela, sua escola do coração. E mais nada! Nem ruído carnavalesco Ferreirinha produzia: parecia uma imagem de televisor sem som.

Os dois fantasiados atravessaram a rua para falar com Ferreirinha. Tucano não o conhecia até então, momento em que foi apresentado e teve ciência de uma breve biografia do portelense discreto passada pelo amigo, com tantas e tais peripécias inusitadas, que Tucano não pôde acreditar, já que ações e ator pareciam não se coadunar, não fazer par. Ferreirinha, bonachão, sorriu um tanto amarelo e ofereceu cerveja aos dois. Eles, embora já atrasados, não podiam fazer desfeita ao amigo e esticaram as goelas e as conversas, fisgaram moelas e fígados de galinha, lembraram outras tantas trapalhadas de adolescência e juventude na Miracema saudosa e deram boas gargalhadas com o Ferreirinha. O entusiasmo aumentou, e resolveram adereçar a cerveja com bicadas de Fogo Paulista, porque o Carnaval prometia. Tudo pelo Rei Momo!

É preciso não se perder no périplo dos dois. Este narrador está atento, porque o desfecho da história compensa o sacrifício.

Assim que deram por fechada a conta e passada a régua com o amigo sistemático, os foliões prometeram-se solenemente seguir direto para a concentração, sem mais delongas. Para a concentração, não, porque àquela altura o bloco já estaria chegando às imediações da Galeria Gold Star, na metade da passarela, bem defronte à Caixa Econômica. Melhor, então, que adentrassem a galeria pela Rua da Conceição, para já sair direto em pleno desfile apoteótico da turba resoluta, que não estava nem aí para o sol escaldante daquele sábado de verão.

Foi entrarem no corredor da esquerda e perceberem o som da bateria lá longe. Tucano ponderou que o bloco ainda deveria estar no esquenta na concentração, o que lhes dava ainda tempo de tomar outra num dos dois botequins internos, sugestão que ele achou bastante atinada, de modo que foram encostar-se ao balcão do bar. Desceram dois chopes com colarinho, e mais dois, e outros dois. O som da bateria foi ficando cada vez mais fraco, mais distante, menos perceptível. No quarto ou quinto chope, já não ouviam mais nada e resolveram, então, dirigir-se à Praça da República, porque imaginaram tratar-se da preparação para o início triunfante do desfile. Nessas ocasiões, sempre se faz um silêncio respeitoso, alguns até com orações, pedidos aos orixás, antes do primeiro ronco da cuíca.

Como os dois já não estivessem deliberando em seu juízo perfeito, não perceberam que o bloco já passara, já tinha chegado à Praça Arariboia e se dispersara ao fim da gloriosa abertura do Carnaval da cidade. Na praça da concentração, indagaram de uns e outros que por ali restavam e souberam que o bloco saíra exatamente ao meio-dia, como programado, e que, àquela altura, já depois das quinze horas, eles só encontrariam alguma fuzarca na Avenida Visconde do Rio Branco, para onde o desfile embicou.

Saíram, assim, os foliões retardatários na direção indicada, cortando caminho por entre ruas paralelas à Avenida Amaral Peixoto, atravessando o Jardim São João, de modo a pegar o refugo do bloco na altura da Marechal Deodoro.

E já não acharam mais nada. Os foliões se dispersaram pelos bares da redondeza, uns aqui, outros ali; alguns com seus instrumentos; outros levando alegorias de mão; todos suados, esfalfados, necessitados de repor líquido antes que se desidratassem. Os de maior poder aquisitivo foram para o Caneco Gelado, na Marquês de Caxias; outros, para os bares e restaurantes do Mercado São Pedro; e todo o resto se espalhou pela infinidade de bares, botequins e biroscas das redondezas.

Os dois amigos não se deram por vencidos e resolveram esticar o desfile frustrado na mesma batida dos demais foliões. E saíram de botequim em botequim, de bar em bar, pelo resto da tarde, princípio da noite, alta noite, madrugada funda, cantando “Mamãe eu quero”, “Você pensa que cachaça é água”, “As águas vão rolar”, e por aí afora.

Neste ponto, o narrador não conseguiu mais ser testemunha do que se passou. Só mesmo na manhã da Terça-feira Gorda, três dias após, é que flagrou a chegada daquele um a casa, todo estropiado, recendendo a álcool, com a machadinha e o arco e flecha desconjuntados à mão, cumprimentado a mulher, como se voltasse do trabalho, trazendo sua maleta 007 na mão. E ouviu em alto e bom som, para que não se fizesse de desentendido, a frase fatídica:

- Pegue seus panos de bunda e ponha-se daqui pra fora!

E não houve argumento, explicação, pedido de desculpas que a demovessem da sentença proferida. A casa era dela, a mobília era dela, as contas ela pagava; e ele era apenas o traste que ela imaginara servir de parceiro. Ele, então, pediu que pelo menos pudesse tomar um banho, escovar os dentes, fazer a trouxa e sair. Ela, magnânima, consentiu, informando que iria ao apartamento da amiga logo abaixo do seu, ficaria lá por cerca de meia hora e, ao voltar, não queria mais vê-lo.

Ele cumpriu seu ritual, pôs as roupas numa mala velha de outros carnavais e saiu deixando a porta encostada.

À noite, a mulher foi para o baile de encerramento do Carnaval de Niterói no Clube Canto do Rio, acompanhada da vizinha do andar de baixo, e cantou a plenos pulmões a liberdade que Momo lhe proporcionava:

“Este ano não vai ser
igual àquele que passou
Eu não brinquei
Você também não brincou”.*

 

                                            Imagem colhida na Internet.

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*Até quarta-feira, de Humberto Silva e Pedro Sette.

4 comentários:

  1. Muito bom ...acompanhei vendo e imaginando cada momento...sendo carnavalesca já vi Ferreirinhas e tantos outros e várias esquinas dos dias 4 dias de folias. Parabéns ao escritor.

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    1. Obrigado, Erica Faria, pela leitura e o comentário. Sei bem de sua relação com o carnaval: bem carnal mesmo. Um beijo!

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  2. Magnifico, Saint-Clair! Passeei por Niteroi e ri, ri muito!!!!
    Obrigada!

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    1. Mais uma vez, Eliana, obrigado por sua leitura e seu comentário!

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