20 de junho de 2021

O CONTO

Ele queria escrever o conto perfeito, definitivo.

Depois de ter uma inspiração vinda não se sabe de onde, vai até o computador e começa a digitar com certo frenesi. As frases iam saindo fáceis, organizando-se em parágrafos bem-estruturados e coerentes. O tema não tinha tanta importância, desde que seu desenvolvimento tivesse nítida linha organizacional e perfeita expressão linguística. Mas, também, quem se importa com história? Há uma infinidade de contos rodando por aí que não chegam a lugar nenhum. Circulam em torno de lucubrações mentais e ganham elogios, e até prêmios.

E continuou a desenvolver o assunto que se lhe apresentara.

De repente parou após o terceiro parágrafo, sem vislumbrar o caminho a seguir. Todo conto é mais ou menos assim, pensou ele. Às vezes ele se impõe ao contista. Diferentemente do que se imagina, o contista não tem a liberdade total de escolher os caminhos da trama. Depois de iniciado, parece que o conto ganha vida própria. O criador não é propriamente o demiurgo plenipotenciário de sua criação e condução. Antes, ela vai propondo vias, atalhos, pontilhões, pinguelas – algumas vezes, até mata-burros -, quase sempre guiando o dedilhar do teclado em direções inéditas para o autor. Assemelha-se a um carro velho descendo estrada de barro à beira de precipícios, sem direção hidráulica e sem freio. Assim, todo cuidado é pouco.

O autor, então, se levanta, vai até a cozinha tomar um copo d’água, um gole de café, a ver se a inspiração original retoma as rédeas – ou a direção – da escrita.

Em pouco tempo, volta ao frenesi inicial de digitação, escolhendo um dos atalhos possíveis, de modo a culminar num desfecho inesperado, a fim de que o leitor, ao final da leitura, extasiado, solte um oh! da garganta. Ou do pensamento! Então ele estará recompensado esteticamente. Conseguira atingir seu objetivo.

O trabalho iniciado chegara a bom termo. Assim se fazia a hora de ler o texto com atenção, revisar tudo, para que nada frustrasse sua expectativa. Olhou com atenção todas as vírgulas, trocou algumas; alterou a posição de termos; antecipou adjuntos em duas ou três frases; revisou regências de cunho popular por outras da forma culta; substituiu a voz passiva locucional pela pronominal, a fim de dar leveza e sofisticação ao texto; e, sobretudo, caprichou na escolha do vocabulário, com o cuidado para não cair no hermetismo de Os sertões ou A carne, mas também não flertar com uns e outros aí que se deixam levar pela linguagem chula e descuidada dos dias atuais.

Então resolveu salvar o texto, desligar o computador e ir dormir. No outro dia, faria a revisão da revisão, já que erros são insidiosos e escapam ao olhar do autor, mais preocupado com o conteúdo do que com a forma.

Dormiu acossado por pesadelos em que gramáticas e dicionários lhe eram atirados sobre a cabeça, ao entrar numa biblioteca soturna, mal iluminada e dirigida por um bibliotecário corcunda, como a personagem de Victor Hugo, o grande contador de histórias da França.

Acordou no meio da noite sobressaltado!

Sem conseguir retomar o sono, resolveu voltar ao computador para mais uma olhadela, sem grandes preocupações, no que escrevera. Sentia-se ainda um pouco ensonado para promover qualquer alteração que pudesse melhorar o que já estava bom, segundo seu juízo.

Mas ainda encontrou alguns pequenos porblemas de digitação, que resolveu sem problemas; acrescentou a marca de plural que faltou em duas palavra, palavras essas, aliás, de caráter culto, praticamente ignotas dos leitores comezinhos. E, principalmente, experimentou pequeno gozo ao se imaginar na linha de um Machado, em seus Contos fluminenses, ou de um moderno como Trevisan, com suas tramas soturnas de Cemitérios de elefantas e suas frases decupadas como um Super 8.

E recuperou o sono, que levou sem mais transtornos até as oito da manhã, quando foi acordado pela mulher para o desjejum.

Daí a meia hora, foi para a varanda tomar um banho de sol de inverno, preocupado com as taxas de vitamina D, após o que retornou ao conto, para mais uma e definitiva revisão.

Tudo certo e revisado, faltava agora o título. Que nome atribuir a um conto sem uma história consistente que o sugerisse de pronto? Pensou, pensou, refletiu bem e não encontrou título adequado. Resolve, então, chamar-lhe simplesmente O conto.

E deu a tarefa por finda. Agora era só publicar.

Imagem em pt.coolclips.com

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