Ele queria escrever o conto perfeito, definitivo.
Depois de ter uma inspiração vinda não se sabe de onde, vai
até o computador e começa a digitar com certo frenesi. As frases iam saindo
fáceis, organizando-se em parágrafos bem-estruturados e coerentes. O tema não
tinha tanta importância, desde que seu desenvolvimento tivesse nítida linha
organizacional e perfeita expressão linguística. Mas, também, quem se importa
com história? Há uma infinidade de contos rodando por aí que não chegam a lugar
nenhum. Circulam em torno de lucubrações mentais e ganham elogios, e até
prêmios.
E continuou a desenvolver o assunto que se lhe
apresentara.
De repente parou após o terceiro parágrafo, sem
vislumbrar o caminho a seguir. Todo conto é mais ou menos assim, pensou ele. Às
vezes ele se impõe ao contista. Diferentemente do que se imagina, o contista não
tem a liberdade total de escolher os caminhos da trama. Depois de iniciado,
parece que o conto ganha vida própria. O criador não é propriamente o demiurgo
plenipotenciário de sua criação e condução. Antes, ela vai propondo vias,
atalhos, pontilhões, pinguelas – algumas vezes, até mata-burros -, quase sempre
guiando o dedilhar do teclado em direções inéditas para o autor. Assemelha-se a
um carro velho descendo estrada de barro à beira de precipícios, sem direção
hidráulica e sem freio. Assim, todo cuidado é pouco.
O autor, então, se levanta, vai até a cozinha tomar um
copo d’água, um gole de café, a ver se a inspiração original retoma as rédeas –
ou a direção – da escrita.
Em pouco tempo, volta ao frenesi inicial de digitação,
escolhendo um dos atalhos possíveis, de modo a culminar num desfecho inesperado,
a fim de que o leitor, ao final da leitura, extasiado, solte um oh! da
garganta. Ou do pensamento! Então ele estará recompensado esteticamente. Conseguira
atingir seu objetivo.
O trabalho iniciado chegara a bom termo. Assim se fazia a
hora de ler o texto com atenção, revisar tudo, para que nada frustrasse sua
expectativa. Olhou com atenção todas as vírgulas, trocou algumas; alterou a
posição de termos; antecipou adjuntos em duas ou três frases; revisou regências
de cunho popular por outras da forma culta; substituiu a voz passiva locucional
pela pronominal, a fim de dar leveza e sofisticação ao texto; e, sobretudo,
caprichou na escolha do vocabulário, com o cuidado para não cair no hermetismo
de Os sertões ou A carne, mas também não flertar com uns e outros aí que se deixam
levar pela linguagem chula e descuidada dos dias atuais.
Então resolveu salvar o texto, desligar o computador e ir
dormir. No outro dia, faria a revisão da revisão, já que erros são insidiosos e
escapam ao olhar do autor, mais preocupado com o conteúdo do que com a forma.
Dormiu acossado por pesadelos em que gramáticas e
dicionários lhe eram atirados sobre a cabeça, ao entrar numa biblioteca
soturna, mal iluminada e dirigida por um bibliotecário corcunda, como a
personagem de Victor Hugo, o grande contador de histórias da França.
Acordou no meio da noite sobressaltado!
Sem conseguir retomar o sono, resolveu voltar ao
computador para mais uma olhadela, sem grandes preocupações, no que escrevera.
Sentia-se ainda um pouco ensonado para promover qualquer alteração que pudesse
melhorar o que já estava bom, segundo seu juízo.
Mas ainda encontrou alguns pequenos porblemas de
digitação, que resolveu sem problemas; acrescentou a marca de plural que faltou
em duas palavra, palavras essas, aliás, de caráter culto, praticamente ignotas
dos leitores comezinhos. E, principalmente, experimentou pequeno gozo ao se
imaginar na linha de um Machado, em seus Contos
fluminenses, ou de um moderno como Trevisan, com suas tramas soturnas de Cemitérios de elefantas e suas frases
decupadas como um Super 8.
E recuperou o sono, que levou sem mais transtornos até as
oito da manhã, quando foi acordado pela mulher para o desjejum.
Daí a meia hora, foi para a varanda tomar um banho de sol
de inverno, preocupado com as taxas de vitamina D, após o que retornou ao
conto, para mais uma e definitiva revisão.
Tudo certo e revisado, faltava agora o título. Que nome
atribuir a um conto sem uma história consistente que o sugerisse de pronto?
Pensou, pensou, refletiu bem e não encontrou título adequado. Resolve, então,
chamar-lhe simplesmente O conto.
E deu a tarefa por finda. Agora era só publicar.
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