8 de junho de 2021

SANSÃO E SEU ANTÔNIO

Seu Antônio vivia sombrio por causa das perspectivas do passado. É isso mesmo. As perspectivas do Seu Antônio se viam pelo retrovisor da vida e não pela janela de vidro sobre a ondulação das montanhas ou o plano pacífico das campinas extensas. Ele ficou assim, depois que lhe morreu Sansão, seu galo de estimação, um shamo japonês de pernas compridas e penas curtas, uma maçaroca de músculo no peito e um olhar matador. Quando seu galo entrava na rinha, isso antes que o abestado Jânio Quadros proibisse as brigas, o galo adversário entregava os pontos e fazia jeitos de galinha choca. Às vezes nem era preciso soltar um pau mortal de suas pernas poderosas. E quantas lutas venceu por WO, apenas porque o dono do adversário descobria que o opositor seria o Sansão.

Então já lá se vão algumas décadas que Seu Antônio vive de suspiros lúgubres por um passado remoto que permanece insistente na soleira de suas memórias. E nem adiantava Dona Carmô, como ele chamava a mulher, preparar angu molinho, com costelinha de porco cozida com quiabo, mais taioba refogada, uma talagada de pinga da boa e pimenta brava, para alegrar seus dias de tristeza e sensaboria.

Sansão fora para a aposentadoria compulsória, por conta da decisão de Brasília no início dos 60, e aos poucos, sem adversários a enfrentar, sem treinamentos a fazer, foi definhando, definhando, como se tomado de depressão, até não servir nem para ensopado de galo com macarrão, apesar do tratamento de sultão que Seu Antônio lhe dispensava.

Pois foi, em certa manhã de agosto, que um frio nebuloso entrando pelas gretas do galinheiro encontrou o velho galo de briga inerte no chão, sob o poleiro principal onde reinara poderoso por vários anos. A vida, a brabeza, o mau humor, a peçonha no olhar o tinham abandonado naquela madrugada, deixando-lhe apenas o corpo definhado com as penas já escassas a lembrar de forma tênue a velha glória de campeão das rinhas.

A notícia foi uma devastação na vida de Seu Antônio. A mulher, ao lhe passar a novidade trazida pela Ceição, sua ajudante nas tarefas domésticas, providenciou um copo d’água fresquinho para lhe amortecer as trepidações do coração. Seu Antônio bambeou o corpo, escureceu a vista por uns segundos e soltou um longo suspiro, deixando-se cair em abandono sobre a cadeira de balanço ao lado da janela. Olhou na parede a foto de Sansão nos áureos tempos, no meio do tambor, o centro do ringue, com o opositor nocauteado a seus pés, uma foto que saíra na primeira página d’A Voz do Povo. Não era homem de chorar, mas não conseguiu reter uma lágrima teimosa que lhe brotou no cantinho do olho esquerdo, aquele mesmo que piscava para o Sansão, no momento de liberar seu golpe mais fulminante.

Passado o choque inicial, Seu Antônio pediu à mulher que lhe arranjasse roupa de sair, pois iria providenciar enterro condigno para seu amigo penoso. E retrucou com visível aborrecimento à proposta que ela lhe fizera, para que enterrassem Sansão aos pés da mangueira frondosa, lá no fundo do quintal.

- Sansão gostava tanto daquela mangueira, Tonho!

- De jeito maneira, Carmô! Sansão, pelo seu passado, merece enterro de pompa.

E não houve jeito de demovê-lo do propósito de ir até o serviço funerário da cidade, explicar sua intenção, rasgando elogios ao amigo defunto, de tal modo convincente, que o agente funerário lhe prometeu ir até a prefeitura, a fim de obter autorização para enterrar o galo no campo santo local.

- Seu Vicente da Funerária, lhe dou prazo de duas horas para resolver a questão! Vou estar em casa aguardando suas notícias.

Vicente, dono da Funerária Ascenção, localizada próxima ao hospital da cidade, pegou o carro e foi de imediato até a prefeitura.

Como em cidades pequenas do interior todos se conhecem, não foi difícil a Vicente convencer o encarregado de sepultamentos a concessão de um pequeno espaço para o corpo de um galo de estimação, considerado pessoa da família do Seu Antônio Apolinário.

- É melhor não desagradar o velho. – disse o funcionário, ao aquiescer à proposta do papa-defuntos.

Com a autorização conseguida, Vicente providenciou um caixão apropriado ao extinto, o qual mandou fazer com a devida urgência, aproveitando para também incluí-lo no catálogo da funerária. Vai que outro maluco queira enterrar seu bicho de estimação, com honras humanas, pensou o prestador de serviços fúnebres.

Seu Antônio mandou convocar o neto, para dirigir seu carro, e partiram, além dos dois, Ceição e Dona Carmô. O carro da Funerária Ascenção seguia à frente levando o ataúde acanhado, enfeitado com cores sóbrias – afinal Sansão não gostava de frufrus e balangandãs. O minúsculo cortejo seguiu pela Rua Aristides Figueiredo, até chegar ao cemitério. Lá no fundo do espaço, sob a sombra de uma paineira, Vicente mandou cavar uma pequena sepultura em que o galo foi enterrado, sob o olhar doloroso da família e um pequeno discurso do Seu Antônio, em que lembrou os feitos da vida do galináceo falecido.

No aniversário de morte, foi inaugurado sobre a sepultura o túmulo de mármore que o velho aficionado em brigas de galo mandou construir para seu amigo de penas.

Desde então, Seu Antônio só tem retrospectivas e não mais perspectivas. Seus olhos miram o retrovisor da vida. O que se apresenta radiante e colorido à sua frente, ele já não mais enxerga. 

Galo shamo (foto obtida na Internet).


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