Atravesso a rua de
paralelepípedos e vou até a oficina do Seu Valdemar. Tenho, por essa altura,
uns nove/dez anos e sou muito curioso. Gosto de conversar. Seu Valdemar, embora
seja uma pessoa um pouco estranha na comunidade, por seu caráter reservado e de
poucas palavras, me trata com cortesia e, se não me engano, também gosta de que
eu apareça por lá, para ficar ouvindo suas histórias. A maioria são histórias
bíblicas.
Sento-me no banco de madeira
colado à parede direita de quem entra pela única porta, que também dá acesso ao
interior da moradia, e puxo algum assunto. Enquanto ele trabalha no conserto e
recuperação de sapatos, vai dizendo para mim histórias exemplares que talvez me
possam influenciar na vida. Algumas vezes, porém, discorre sobre sua arte com o
couro e me mostra como faz para recuperar um sapato já com marcas do uso
prolongado e deixá-lo como novo. Sua sapataria recende a couro e tintas e, como
sonoplastia, às vezes apresenta um concerto de marteladas abafadas sobre o
couro dos sapatos que repara. Se não estou ali para essa tipo de
relacionamento, não se ouve a voz dele.
Seu Valdemar, na minha visão
de menino, já era um senhorzinho. Hoje imagino que ele tivesse uns sessenta
anos por aquela ocasião. Era casado com Dona Tana, que me parecia tão idosa
quanto ele. Os dois eram extremamente reservados, sendo mais fácil vê-los na
capela de Santo Antônio nas missas do mês, nas orações semanais, nos terços e
ladainhas, que ele puxava com devoção, e nas festas de coroação da imagem de
Nossa Senhora, que ocorriam todo mês de maio. Batendo perna pela rua, só se
fosse numa procissão. De resto, eles faziam um casal doméstico por excelência.
A sua casa, na rua principal da vila, não era
grande. De vez em quando, durante o tempo em que lá ficava a conversar, eu
pedia um copo d’água e adentrava sua casa. Havia uma pequena sala ao lado da
oficina, com uma pequena mesa redonda, sempre coberta com uma toalha de crochê,
a acanhada cozinha contígua, que dava para um quintal pequeno e se comunicava
com o quarto do casal.
O quintal, todo verde de
vegetação, com poucas árvores altas e o chão de grama, tinha bem no meio uma
cacimba, com um muro de proteção redondo, alto para mim, com uma roldana e um
balde de madeira sobre o vão. A água de se beber, na casa, vinha dessa cacimba
e era fresca e leve, sem o gosto de cloro que sentíamos na água fornecida à
vila pelo serviço público. Poucas vezes, no entanto, fui até a cacimba, porque
Dona Tana, que me acompanhava nessas ocasiões, temia que pudesse ocorrer algum
acidente, em virtude da curiosidade característica das crianças.
Assim que bebia a água,
voltava rápido à oficina, para continuar o papo interrompido – Abraão ia
sacrificar seu filho, para atender a uma ordem de Deus –, e ficar admirando a
habilidade dele com a sovela, a faca de sapateiro, as linhas, as tintas e as
graxas. Um trabalho muito comum por essa época, dadas as condições econômicas
da vila, era a recuperação da sola do sapato.
Todos os sapatos eram então de
couro. Ainda não havia outros materiais como vemos hoje. Assim o uso reiterado
do sapato produzia desgaste no solado, de modo que sempre apareciam furos na
altura da planta dos pés. Nesses casos, estando o cabedal ainda em bom estado,
era possível fazer uma meia-sola, um dos serviços mais comuns a que se
dedicava.
Ele cortava com a faca, cuja
lâmina era afiadíssima, até próximo ao salto, e retirava o couro furado,
imediatamente substituído por outro de espessura semelhante. Em seguida
costurava a meia-sola de volta no cabedal, com pontos bem apertados, produzidos
com a sovela de ponta fina, e dava o acabamento com limas e lixas apropriadas.
Caso precisasse também substituir o salto, retirava o antigo com uma torquês ou
um alicate e o substituía por um novo, pregado à alma original com pregos de
ponta fina, rebatidos com cuidado sobre a bigorna de ferro, que acomodava sobre
suas pernas. Todos os reparos prontos, limpava o cabedal, passava a tinta de
cor semelhante, que escovava freneticamente antes que ela secasse, a fim de a
espalhar por igual sobre o couro. Em seguida, aplicava duas ou três demãos de
graxa conforme a necessidade, tornava a escovar, agora com precisão e cuidado,
de modo a devolver ao couro o possível esplendor que outrora tivera, e
arrematava com o brilho puxado pela flanela já apropriada a isso.
Por essa altura do trabalho,
o anjo de Deus já havia aparecido para Abraão e suspendido o sacrifício de
Isaque, história aliás que me deixava apavorado só em pensar que um pai pudesse
matar o próprio filho, mesmo em honra a Deus. Ou, mais aceitável para mim, que
Simão de Cirene tenha sido constrangido pelos soldados romanos a carregar a
cruz de Cristo. Quem sabe algum dia eu pudesse ser tão temente a Deus ou
aceitasse carregar a cruz que me coubesse vida afora, sem reclamações e
imprecações!
Seu Valdemar dava os últimos
retoques naquele velho sapato, agora recuperado para uma vida mais extensa,
arrumava suas ferramentas com zelo, dobrava a toalha que tinha sobre as pernas
a proteger a calça e me informava que estava na hora do almoço. Dona Tana já o
chamara lá de dentro da cozinha. Eu me despedia dele, com um “até mais!” ou
“até logo!”– por essa época ainda não havia “tchau” em nossa linguagem – e
também ia para casa almoçar.
Voltaria lá outro dia, para
continuar nosso papo e admirar seu minúsculo trabalho de sapateiro numa
pequenina vila do interior.
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Van Gogh, O par de sapatos, 1886; Museu Van Gogh (wikipedia.com). |
Consertou muitos sapatos hoje pouco c vê sapateirs
ResponderExcluirÉ uma profissão em extinção, infelizmente.
ExcluirO sapato ficava novo outravez
ResponderExcluirCom certeza.
ExcluirMeu pai fazia os melhores tamancos que existiam.Alguem lembra? Meus irmãos subia a montanha para buscar amadeira certa.
ExcluirUm calso sobre o Sr. Valdemar sapateiro. Dizem que quando rezava a ladainha um camundongo entrou em sua calça social com bainha de barra italiana e o Sr. Valdemar o segurou acima do joelho permanecendo assim até o fim das orações. Duvida?
ResponderExcluirNão duvido, porque estava em Carabuçu nessa época do acontecido. Hahaha!
ExcluirPeguei algumas pinhas do quintal dele.
ResponderExcluirHahaha!
ExcluirFoi verdade essa história do camundongo eu estava na ladainha vimos o ratinho entrar pela perna de sua calça. Seu Valdemar continuou impassível na sua oração. E nós ainda crianças esperamos até o final para ver onde o rato estava
ResponderExcluirQuando terminou ele sacudiu suas pernas e o ratinho caiu mortinho da silva