11 de dezembro de 2021
POESIA
28 de novembro de 2021
LÁ VAI O TEMPO
17 de novembro de 2021
O DANÇARINO
Jaé chegou agitado ao
botequim onde estávamos. Camisa cor de barro claro, botões dourados – apenas a
metade abotoada, deixando parte do peito à mostra –, cabelo enrolado brilhando
a gel, perfume popular invasivo, que deixou o ambiente empesteado com seu
cheiro, e um sorriso de cremalheira novinha. Foi saudado por boa parte dos que,
àquela hora, desfrutavam dos prazeres do paladar.
- Aí, Jaé!
- Fala, Jaé!
- Tudo em cima, Jaé?
Retornou os cumprimentos de
forma simpática e se dirigiu ao balcão daquele estabelecimento acanhado,
simples, sem a mínima sofisticação, mas capaz de regurgitar delícias das bocas
de seu fogão antigo, o que justificava a presença de tantos fregueses.
Logo pediu ao Marquinhos,
proprietário do local, um copo de 51 cheio e uma latinha de Coca. O copo é do
tipo americano, e a cachaça atingia a risca superior, quase palmeando a borda. Contou
reinações diversas, viagem a Grussaí, bailes variados, numa dicção um tanto
enrolada, parecendo segurar a dentadura, para que ela não pulasse da boca e
causasse lesões nos circunstantes. A seguir, abriu a lata do refrigerante,
acabou de encher o copo, apenas toldando a transparência da aguardente. Quando
me virei para pegar meu copo de cerveja – eu também estava com o umbigo
encostado ao balcão –, apenas percebi seu gesto de devolver o copo já vazio. Para
meu espanto, ele tomou de um só sorvo, num átimo, todo aquele conteúdo da
mistura que fizera. Marquinhos me olhou de soslaio, como a indagar se eu já
vira algo semelhante, e, pela minha expressão, teve a certeza de que era minha
primeira vez. Simples inocente eu era na arte de ingerir álcool.
Ele contou mais histórias engraçadas,
enquanto bebericava golinhos de Coca. Disse que estava indo para Laranjal, em
Minas, logo ali ao lado, para mais um dos bailes de fim de semana. Pediu ao
dono do botequim que lhe servisse mais pinga, agora apenas a metade do copo
americano. Despejou sobre a mardita o restinho de Coca, meteu a mistura para
dentro com o mesmo ímpeto, sem caretas e sem muxoxos, pagou os oito reais da
despesa e partiu em direção à van que o esperava na esquina junto ao posto de
gasolina, já com a lotação completa. Saiu falando "já é", razão do
apelido, em alto e bom som, para que todos se dessem conta de que seu destino
estava selado.
- Já é! Já é!
Os que ficaram bebendo
gabaram-lhe os dotes de dançarino mais do que requisitado: em vários bailes tem
o acesso liberado, sem necessidade de pagar ingresso. E também o fato de já
chegar calibrado aos salões, onde não gasta mais nada e consegue manter o corpo
esguio com aquela malemolência que o álcool produz, até o final da função. Se Jaé
não for, periga não haver dança. Nos rodopios e fricotes, como me asseveraram
os parceiros de libações, Jaé é insubstituível. Mais até do que no hospital da
cidade, onde exerce a nobre função de auxiliar de enfermagem, fazendo curativos
com esparadrapo e gaze e removendo espinho de laranjeira do pé de menino
imprudente.
Imagem colhida na Internet.
1 de novembro de 2021
A NOITE VAI SER BOA
É sábado. É dia de função.
Mal o sol começa a adormecer sua luz amarelada atrás dos
morros em torno da vila, a venda do meu pai começa a receber seus habituais
frequentadores. Daí a pouco a noite vai-se anunciando, e a débil iluminação
pública espanta um pouco da escuridão daqui e dali, dando a todos a orientação
pelas acanhadas ruas de paralelepípedo.
A venda está na esquina nobre de Carabuçu: Rua Cel.
Alfredo Portugal com Rua Cel. Antônio Olímpio de Figueiredo. É uma loja pequena
de três portas frontais e uma lateral, um balcão que fecha a passagem para a
parte interna, acessada através de um tampo que se abre para cima, deixando aos
fregueses um minguado espaço, com um banco de madeira encostado à parede, à
esquerda de quem entra.
Meu pai trabalha com secos e molhados, como se convencionava
chamar o comércio de gêneros de primeira necessidade para o sustento das
pessoas.
Muitos desses clientes vêm para comprar os mantimentos da
semana. Outros vêm pelo sabor do pé de moleque que minha mãe faz com maestria.
Todos, no entanto, estão ali para a conversa solta que anima aquelas noites sem
pressa do interior. Nada há de mais característico por esse tempo do que as
rodas de prosa de homens afeitos à luta diária, em seus momentos de
descontração.
Primeiro chega o riso franco do Azamor, acompanhado de
seus irmãos. Também os irmãos Romualdo – Antônio, Tião e Zé – chegam aos
poucos. Alcides Almeida, José Precisval, Dico Hilário, o ferreiro Jeremias, com
suas expressões sérias num rosto que denota o cansaço da lida; as mãos moldadas
à madeira do Aristides Lugão; a sabedoria esportiva do João Coleto, entre baforadas
de Liberty ovais; os causos extraordinários do João Dutra; a altura descomunal
do Gabriel e seus irmãos, nenhum com menos de um metro e noventa; a esperteza cigana
para negócios do Ferreirinha; as transações com passarinhos do Todinho, filho
do Custódio Quintal e beque de espera do Liberdade Esporte Clube. Tudo compõe aquele
espaço mítico da minha infância.
Aos poucos a venda vai ficando ainda menor, à medida que
o tempo passa e os frequentadores se somam.
Meu pai não vende bebida alcoólica, porque diz não ter
paciência para aturar enjoo de bêbado, fora as confusões que eles arranjam.
Aos poucos o vidro de pés de moleque começa a esvaziar, o
que faz minha mãe reabastecê-lo com outro tanto daquela delícia.
A cada história do João Dutra, dá-se a multiplicação das
gargalhadas. Até mesmo os mais sérios, como o Alcides Almeida e o Dico Hilário,
não resistem às histórias estrambóticas muito bem contadas pelo João Dutra, o
homem do relógio de bolso mais confiável do mundo.
Ferreirinha sempre tem uma oferta a fazer: ou troca, ou
vende, ou compra alguma coisa: cavalo, boi, passarinho. Todos conhecem bem a
sua astúcia para negócios. Só mesmo o Todinho entra na negociação de algum
pássaro que lhe interesse: um curió cantador, um coleirinho do brejo brejeiro,
um trinca-ferro barulhento. Pangaré, nem pensar, que Todinho bem sabe das artimanhas
do amigo e se acautela para não levar uma manta de entortar a espinha dorsal.
Enquanto segue o burburinho, outros personagens entram em
cena na ação da noite, todos na intenção de combinar a pescaria do domingo
cedo. É o Domingos Peçanha, é o Alcino Oliveira, que já com os outros
companheiros de varas e minhocas, Alcides Almeida, João Dutra e Aristides
Lugão, acertam horário e discutem os melhores pesqueiros, os peixes da época e
as iscas apropriadas.
Azamor, então, lembra aos amigos o caso do Saci Pererê
que andava assombrando as pessoas que se dirigiam muito cedo para aqueles lados
do Rio Itabapoana. Relata, inclusive, uma carreira que seu irmão ali ao lado, que
não o deixa mentir, tomou daquele bicho danado, quando, ainda com o escurinho
da madrugada, jogou seu anzol na curva do rio, já em terras do Jorge Assis.
Todos se espantam com a narrativa, até que o Azamor, com sua gargalhada
inconfundível, deixa o ambiente alegre e descontraído. Tudo fanfarronice para divertir
os presentes. Contudo, convém lembrar, sempre há alguém a acreditar nessas
visões noturnas, nesses bichos excomungados dos confins do mato. E é de bom resguardo
ter um trabalho, um patuá, uma guia benzida para se proteger deles.
Os Romualdos, sempre falantes, direcionam a prosa no rumo
das “dificulidades” no manejo de bichos de criação e na carpição de eitos de
terra seca e dura, a aguardar as primeiras chuvas benfazejas. Tião,
indefectivelmente, tem um palito de fósforo no canto da boca, embaixo do bigode
espalhado acima do beiço, o qual fósforo trepida à medida que ele conta sua
luta.
Dico Hilário e José Precisval são sempre sérios e só
riem, aliás, só sorriem se a história for muito engraçada, daquelas de
escangalhar o esqueleto. Caso contrário, ficam de prosa com o Alcides Almeida,
primo do meu pai e homem também de poucas palavras.
Gabriel e os irmãos, do último andar de suas pessoas, bem
acima dos demais, mantêm-se atentos a todas as conversas e patranhas daquele
grupo animado e não economizam riso. Quase sempre acrescentam histórias
hilariantes àquelas tantas já contadas durante a função.
Isso é quase uma peça teatral, sem texto prévio, sem
direção de elenco, sem iluminação cenográfica. Apenas os atores fazem os
improvisos que todos apreciam e transformam aquela noite em um acontecimento indelével.
Tais ações e falas ocorrem harmonicamente com a atividade
do meu pai em atender o pedido desse e daquele freguês: cinco quilos de arroz,
dois quilos de feijão, um quilo de farinha de mandioca, um quilo de sal grosso,
um quilo de macarrão goela de pato, dois quilos de banha de porco, trezentos
gramas de biscoito maria, mais dois quilos de carne-seca gorda. Ah! Ia me
esquecendo, põe também duzentos gramas de bicarbonato e uma latinha de fermento
em pó.
Quase nada se paga à vista. Há um borrador em que se
anotam as compras de cada um. Alguns têm caderneta, para seu controle, mas o
vendeiro é um homem correto e faz questão de mostrar tudo que foi anotado aos
que sabem ler. Ou repete, para os que não dominam o corcoveio esquisito das
letras, o rol de coisas que eles levam naquela noite. Mais dias, menos dias,
eles voltam com o dinheiro para quitar o débito e deixar o nome limpo na praça.
Mais para o fim da noite, por volta das dez horas, os
assuntos se vão esgotando, a tagarelice diminui, até que o último participante
daquele arremedo de teatro caboclo fecha o convívio com um boa noite ou um “inté”,
e o vendeiro cerra as portas do seu pequeno estabelecimento, dá a última
arrumação no que ficou fora do lugar, apaga a luz e vai para os fundos da casa,
onde mora com mulher e quatro filhos ainda crianças, que ouvem os últimos
acordes da Lyra de Xopotó, através das ondas da Rádio Nacional.
Aquela noite foi muito boa! E a pescaria do dia seguinte
promete abrandar todas as tensões da semana.
25 de outubro de 2021
ANDEI OUVINDO MÚSICA
9 de outubro de 2021
A LESMA
(A partir do poema A lesma, de Jayro José Xavier.)
17 de setembro de 2021
TIPO ASSIM (VIII) - SEU VALDEMAR
Atravesso a rua de
paralelepípedos e vou até a oficina do Seu Valdemar. Tenho, por essa altura,
uns nove/dez anos e sou muito curioso. Gosto de conversar. Seu Valdemar, embora
seja uma pessoa um pouco estranha na comunidade, por seu caráter reservado e de
poucas palavras, me trata com cortesia e, se não me engano, também gosta de que
eu apareça por lá, para ficar ouvindo suas histórias. A maioria são histórias
bíblicas.
Sento-me no banco de madeira
colado à parede direita de quem entra pela única porta, que também dá acesso ao
interior da moradia, e puxo algum assunto. Enquanto ele trabalha no conserto e
recuperação de sapatos, vai dizendo para mim histórias exemplares que talvez me
possam influenciar na vida. Algumas vezes, porém, discorre sobre sua arte com o
couro e me mostra como faz para recuperar um sapato já com marcas do uso
prolongado e deixá-lo como novo. Sua sapataria recende a couro e tintas e, como
sonoplastia, às vezes apresenta um concerto de marteladas abafadas sobre o
couro dos sapatos que repara. Se não estou ali para essa tipo de
relacionamento, não se ouve a voz dele.
Seu Valdemar, na minha visão
de menino, já era um senhorzinho. Hoje imagino que ele tivesse uns sessenta
anos por aquela ocasião. Era casado com Dona Tana, que me parecia tão idosa
quanto ele. Os dois eram extremamente reservados, sendo mais fácil vê-los na
capela de Santo Antônio nas missas do mês, nas orações semanais, nos terços e
ladainhas, que ele puxava com devoção, e nas festas de coroação da imagem de
Nossa Senhora, que ocorriam todo mês de maio. Batendo perna pela rua, só se
fosse numa procissão. De resto, eles faziam um casal doméstico por excelência.
A sua casa, na rua principal da vila, não era
grande. De vez em quando, durante o tempo em que lá ficava a conversar, eu
pedia um copo d’água e adentrava sua casa. Havia uma pequena sala ao lado da
oficina, com uma pequena mesa redonda, sempre coberta com uma toalha de crochê,
a acanhada cozinha contígua, que dava para um quintal pequeno e se comunicava
com o quarto do casal.
O quintal, todo verde de
vegetação, com poucas árvores altas e o chão de grama, tinha bem no meio uma
cacimba, com um muro de proteção redondo, alto para mim, com uma roldana e um
balde de madeira sobre o vão. A água de se beber, na casa, vinha dessa cacimba
e era fresca e leve, sem o gosto de cloro que sentíamos na água fornecida à
vila pelo serviço público. Poucas vezes, no entanto, fui até a cacimba, porque
Dona Tana, que me acompanhava nessas ocasiões, temia que pudesse ocorrer algum
acidente, em virtude da curiosidade característica das crianças.
Assim que bebia a água,
voltava rápido à oficina, para continuar o papo interrompido – Abraão ia
sacrificar seu filho, para atender a uma ordem de Deus –, e ficar admirando a
habilidade dele com a sovela, a faca de sapateiro, as linhas, as tintas e as
graxas. Um trabalho muito comum por essa época, dadas as condições econômicas
da vila, era a recuperação da sola do sapato.
Todos os sapatos eram então de
couro. Ainda não havia outros materiais como vemos hoje. Assim o uso reiterado
do sapato produzia desgaste no solado, de modo que sempre apareciam furos na
altura da planta dos pés. Nesses casos, estando o cabedal ainda em bom estado,
era possível fazer uma meia-sola, um dos serviços mais comuns a que se
dedicava.
Ele cortava com a faca, cuja
lâmina era afiadíssima, até próximo ao salto, e retirava o couro furado,
imediatamente substituído por outro de espessura semelhante. Em seguida
costurava a meia-sola de volta no cabedal, com pontos bem apertados, produzidos
com a sovela de ponta fina, e dava o acabamento com limas e lixas apropriadas.
Caso precisasse também substituir o salto, retirava o antigo com uma torquês ou
um alicate e o substituía por um novo, pregado à alma original com pregos de
ponta fina, rebatidos com cuidado sobre a bigorna de ferro, que acomodava sobre
suas pernas. Todos os reparos prontos, limpava o cabedal, passava a tinta de
cor semelhante, que escovava freneticamente antes que ela secasse, a fim de a
espalhar por igual sobre o couro. Em seguida, aplicava duas ou três demãos de
graxa conforme a necessidade, tornava a escovar, agora com precisão e cuidado,
de modo a devolver ao couro o possível esplendor que outrora tivera, e
arrematava com o brilho puxado pela flanela já apropriada a isso.
Por essa altura do trabalho,
o anjo de Deus já havia aparecido para Abraão e suspendido o sacrifício de
Isaque, história aliás que me deixava apavorado só em pensar que um pai pudesse
matar o próprio filho, mesmo em honra a Deus. Ou, mais aceitável para mim, que
Simão de Cirene tenha sido constrangido pelos soldados romanos a carregar a
cruz de Cristo. Quem sabe algum dia eu pudesse ser tão temente a Deus ou
aceitasse carregar a cruz que me coubesse vida afora, sem reclamações e
imprecações!
Seu Valdemar dava os últimos
retoques naquele velho sapato, agora recuperado para uma vida mais extensa,
arrumava suas ferramentas com zelo, dobrava a toalha que tinha sobre as pernas
a proteger a calça e me informava que estava na hora do almoço. Dona Tana já o
chamara lá de dentro da cozinha. Eu me despedia dele, com um “até mais!” ou
“até logo!”– por essa época ainda não havia “tchau” em nossa linguagem – e
também ia para casa almoçar.
Voltaria lá outro dia, para
continuar nosso papo e admirar seu minúsculo trabalho de sapateiro numa
pequenina vila do interior.
![]() |
Van Gogh, O par de sapatos, 1886; Museu Van Gogh (wikipedia.com). |
10 de setembro de 2021
COMO QUALQUER BICHO
11 de agosto de 2021
QUANDO EU MORRER (III)
Quando eu morrer
Não mandem flores
Não acendam velas
Não chorem nem se condoam
Terei vivido meu tempo
Terei sido feliz
Terei aproveitado cada pôr do sol
Como se fosse o único
Terei amado as pessoas
A mulher os filhos os netos os amigos
Como se fossem únicos
Terei lido bons livros
Ouvido boa música
Bebido boas bebidas
Quando eu morrer
Não toquem sinos
Toquem música barroca
Toquem rock progressivo
Toquem samba
Ou um chorinho dolente
21 de julho de 2021
VIAGEM POR NUESTRA AMÉRICA
Amigos leitores,
incentivado pela amiga Imara Reis, registrei as memórias da viagem que eu, minha mulher e meus amigos Eduardo Pacheco de Campos, Rogério Andrade Barbosa e Mara, empreendemos pelo Cone Sul da América, em janeiro de 1976.
Agora o texto, com o título Viagem por nuestra América, foi lançado pelo Clube de Leitores, onde também já publiquei meus outros livros (Asfalto&mato, contos; Itinerário para quem chega a Liberdade, poemas; e Pensamentos bem-pensados, frases).
Caso tenham interesse em adquiri-lo sob a forma impressa ou virtual (e-book), é só clicar na imagem da capa, para ser direcionado ao sítio da editora.
Antecipadamente, agradeço seu interesse.
30 de junho de 2021
A LOIRA DO ÔNIBUS
Lúcio já
estava no ônibus, quando entra uma nova passageira e se acomoda ao seu lado no
banco. Era uma loira descomunal, como avaliou mentalmente, assim que a olhou de
soslaio. Ela, simpática, deu-lhe bom dia e pediu licença para acomodar toda a
sua pessoa ao lado do psicologicamente boquiaberto Lúcio – na verdade, ele não
teve a coragem de abrir a boca e ficar com cara de bobo.
A partir daí,
a cabeça de Lúcio entrou em parafuso, num alvoroço de pensamentos como numa brain storm de que estava acostumado a
participar na agência de publicidade onde trabalhava.
Como uma
loira daquele porte, daquela envergadura, daquela compleição física soberba – e
que cabelos! -, poderia andar no prosaico transporte público e dividir o banco
com um reles mortal, que sinceramente nem tinha onde cair morto? Não haveria
nenhum ser humano, proprietário de uma Lamborghini, de uma Ferrari ou de uma
Maseratti, de uma – vá lá que seja – Alfa Romeo, disposto a transportá-la para
baixo e para cima? Para onde a loira quisesse ir, sem pestanejar, sem indagar
dos motivos? Como esse mundo é desajustado, continuou ele em suas caraminholas.
Por muito menos ela estaria em páginas de revistas masculinas, daquelas
antigas, fazendo o delírio da galera. Ou, caso seja recatada, num editorial de
moda, ou num comercial de produtos de beleza. E não! Estava tão somente ao seu
lado no ônibus.
Ele só não
reparara, tão logo ela entrou, se o pagamento fora em dinheiro ou num reles
cartão de bilhete único. Com certeza aquela loira não merecia possuir um
prosaico cartão de transporte público. Aliás nem deveria pagar passagem. Muito
ao contrário! A empresa concessionária deveria pagar para que ela viajasse em
seus ônibus e, então, fazer propaganda com ela, sorridente, segurando o cartão
a convidar os demais comuns dos mortais a utilizarem aquele mesmo ônibus.
Lúcio pensou
em lhe dar seu cartão de visitas e convidá-la a ir fazer um teste na agência
onde trabalhava. Aquela loira era um material humano a não ser desperdiçado, em
hipótese nenhuma. E, vá lá, haveria a possibilidade de vê-la outras vezes e,
quem sabe, até desenvolver uma amizade, seguida de uma afeição e de um louco
amor. Tudo é possível na vida, imaginou com exagerada autocomplacência. Até mesmo
o impossível!
A loira, sem
se dar conta de todo o frisson
causado no cavalheiro ao lado, abriu sua bolsa de onde tirou o celular, acessou
uma rede social – de rabo de olho, ele verificou se tratar do WhatsApp – e
começou a digitar freneticamente. A cada mensagem de volta, seu olhar se
iluminava mais e um leve sorriso começava a emoldurar seu rosto já por demais
perfeito. Lúcio estava atento aos mínimos movimentos da moça, sem que virasse a
cabeça. Apenas seus olhos flutuavam de um lado para o outro, a fim de tentar saber
mais alguma coisa da loira.
O ônibus já
havia passado por dois pontos, em que alguns passageiros desceram e outros
subiram. O próximo ponto, diante da pracinha onde se localizava o prédio da
agência, seria seu local de descida. Ele, porém, estava tentado a seguir na viagem
até onde a loira ficasse. Desceria um ponto depois dela e voltaria. Aquela era
uma oportunidade única de viajar com pessoa tão bonita ao seu lado. Jamais tivera
tal sensação. E ainda haveria a possibilidade de que, durante o trajeto, ela se
dignasse a lhe perguntar as horas ou fazer algum comentário bobinho sobre o
tempo, ou uma consideração mais séria acerca do aquecimento global. Não haveria
problema nenhum, caso chegasse alguns minutos atrasados naquele dia.
Antes que ele
acionasse o pedido de parada, a loira apertou seu mimoso dedo indicador,
decorado por esmalte de cor chamativa, sobre o botão colocado na coluna ao lado
do banco. Milagre, pensou ele. Ela desceria no mesmo ponto, diante da pracinha.
Por uma
questão de cavalheirismo – e, inconfessavelmente, para apreciar a pessoa da
loira em toda a sua exuberância pela retaguarda –, seguiu atrás dela pelo
corredor do veículo, mal conseguindo disfarçar para os demais passageiros, que
se viravam para olhar a loira, a admiração estampada na cara.
Com cuidado e
elegância sensual, a loira desce os degraus, segurando-se na coluna para não
forçar a saia justa, enquanto ele aguarda sua vez. Sem pressa, porém sôfrego, o
‘coração em desalinho’ como na canção, segue atrás dela, em procissão. A loira
caminha em direção à rua lateral da pracinha, também para onde ele vai. Seu coração
trepida como tamborim em ensaio de escola de samba, com instantes de surdo de
marcação. E imagina a possibilidade de que ela também vá até a agência de
publicidade.
Sem tirar os
olhos dela, a alguns passos à sua frente – ele faz questão de retardar a marcha
–, não percebe, parada na lateral da rua, quase diante do prédio onde trabalha,
uma Ferrari vermelha, conversível, com um motorista bem-vestido, de óculos
escuros e cabelos em elegante desalinho, como um modelo em peças publicitárias.
Ao se aproximar do carro, a loira faz um cumprimento jovial ao motorista, contorna o bólido, entra pela porta, que o homem abre desde seu assento, e se acomoda no banco de couro com o símbolo daquela máquina infernal. Dá um selinho naquele miserável, passa o cinto de segurança sobre seu peito deslumbrante, no instante em que, o motor já acionado, o desgraçado dá a partida no carro, acessa a avenida principal e some na descida da rua após o semáforo, deixando o coração do pobre diabo do Lúcio em frangalhos, desmontado como um velho carburador cheio de problemas.
Vida desgraçada,
pensou ele. Agora vou subir e terminar aquele maldito encarte de supermercado
com promoção de produtos de higiene e limpeza.
20 de junho de 2021
O CONTO
Ele queria escrever o conto perfeito, definitivo.
Depois de ter uma inspiração vinda não se sabe de onde, vai
até o computador e começa a digitar com certo frenesi. As frases iam saindo
fáceis, organizando-se em parágrafos bem-estruturados e coerentes. O tema não
tinha tanta importância, desde que seu desenvolvimento tivesse nítida linha
organizacional e perfeita expressão linguística. Mas, também, quem se importa
com história? Há uma infinidade de contos rodando por aí que não chegam a lugar
nenhum. Circulam em torno de lucubrações mentais e ganham elogios, e até
prêmios.
E continuou a desenvolver o assunto que se lhe
apresentara.
De repente parou após o terceiro parágrafo, sem
vislumbrar o caminho a seguir. Todo conto é mais ou menos assim, pensou ele. Às
vezes ele se impõe ao contista. Diferentemente do que se imagina, o contista não
tem a liberdade total de escolher os caminhos da trama. Depois de iniciado,
parece que o conto ganha vida própria. O criador não é propriamente o demiurgo
plenipotenciário de sua criação e condução. Antes, ela vai propondo vias,
atalhos, pontilhões, pinguelas – algumas vezes, até mata-burros -, quase sempre
guiando o dedilhar do teclado em direções inéditas para o autor. Assemelha-se a
um carro velho descendo estrada de barro à beira de precipícios, sem direção
hidráulica e sem freio. Assim, todo cuidado é pouco.
O autor, então, se levanta, vai até a cozinha tomar um
copo d’água, um gole de café, a ver se a inspiração original retoma as rédeas –
ou a direção – da escrita.
Em pouco tempo, volta ao frenesi inicial de digitação,
escolhendo um dos atalhos possíveis, de modo a culminar num desfecho inesperado,
a fim de que o leitor, ao final da leitura, extasiado, solte um oh! da
garganta. Ou do pensamento! Então ele estará recompensado esteticamente. Conseguira
atingir seu objetivo.
O trabalho iniciado chegara a bom termo. Assim se fazia a
hora de ler o texto com atenção, revisar tudo, para que nada frustrasse sua
expectativa. Olhou com atenção todas as vírgulas, trocou algumas; alterou a
posição de termos; antecipou adjuntos em duas ou três frases; revisou regências
de cunho popular por outras da forma culta; substituiu a voz passiva locucional
pela pronominal, a fim de dar leveza e sofisticação ao texto; e, sobretudo,
caprichou na escolha do vocabulário, com o cuidado para não cair no hermetismo
de Os sertões ou A carne, mas também não flertar com uns e outros aí que se deixam
levar pela linguagem chula e descuidada dos dias atuais.
Então resolveu salvar o texto, desligar o computador e ir
dormir. No outro dia, faria a revisão da revisão, já que erros são insidiosos e
escapam ao olhar do autor, mais preocupado com o conteúdo do que com a forma.
Dormiu acossado por pesadelos em que gramáticas e
dicionários lhe eram atirados sobre a cabeça, ao entrar numa biblioteca
soturna, mal iluminada e dirigida por um bibliotecário corcunda, como a
personagem de Victor Hugo, o grande contador de histórias da França.
Acordou no meio da noite sobressaltado!
Sem conseguir retomar o sono, resolveu voltar ao
computador para mais uma olhadela, sem grandes preocupações, no que escrevera.
Sentia-se ainda um pouco ensonado para promover qualquer alteração que pudesse
melhorar o que já estava bom, segundo seu juízo.
Mas ainda encontrou alguns pequenos porblemas de
digitação, que resolveu sem problemas; acrescentou a marca de plural que faltou
em duas palavra, palavras essas, aliás, de caráter culto, praticamente ignotas
dos leitores comezinhos. E, principalmente, experimentou pequeno gozo ao se
imaginar na linha de um Machado, em seus Contos
fluminenses, ou de um moderno como Trevisan, com suas tramas soturnas de Cemitérios de elefantas e suas frases
decupadas como um Super 8.
E recuperou o sono, que levou sem mais transtornos até as
oito da manhã, quando foi acordado pela mulher para o desjejum.
Daí a meia hora, foi para a varanda tomar um banho de sol
de inverno, preocupado com as taxas de vitamina D, após o que retornou ao
conto, para mais uma e definitiva revisão.
Tudo certo e revisado, faltava agora o título. Que nome
atribuir a um conto sem uma história consistente que o sugerisse de pronto?
Pensou, pensou, refletiu bem e não encontrou título adequado. Resolve, então,
chamar-lhe simplesmente O conto.
E deu a tarefa por finda. Agora era só publicar.
8 de junho de 2021
SANSÃO E SEU ANTÔNIO
Seu Antônio vivia sombrio por causa das perspectivas do passado. É
isso mesmo. As perspectivas do Seu Antônio se viam pelo retrovisor da vida e
não pela janela de vidro sobre a ondulação das montanhas ou o plano pacífico
das campinas extensas. Ele ficou assim, depois que lhe morreu Sansão, seu galo
de estimação, um shamo japonês de pernas compridas e penas
curtas, uma maçaroca de músculo no peito e um olhar matador. Quando seu galo
entrava na rinha, isso antes que o abestado Jânio Quadros proibisse as brigas,
o galo adversário entregava os pontos e fazia jeitos de galinha choca. Às vezes
nem era preciso soltar um pau mortal de suas pernas poderosas. E quantas lutas
venceu por WO, apenas porque o dono do adversário descobria que o opositor
seria o Sansão.
Então já lá se vão algumas décadas que Seu Antônio vive de
suspiros lúgubres por um passado remoto que permanece insistente na soleira de
suas memórias. E nem adiantava Dona Carmô, como ele chamava a mulher, preparar
angu molinho, com costelinha de porco cozida com quiabo, mais taioba refogada,
uma talagada de pinga da boa e pimenta brava, para alegrar seus dias de
tristeza e sensaboria.
Sansão fora para a aposentadoria compulsória, por conta da decisão
de Brasília no início dos 60, e aos poucos, sem adversários a enfrentar, sem
treinamentos a fazer, foi definhando, definhando, como se tomado de depressão,
até não servir nem para ensopado de galo com macarrão, apesar do tratamento de
sultão que Seu Antônio lhe dispensava.
Pois foi, em certa manhã de agosto, que um frio nebuloso entrando
pelas gretas do galinheiro encontrou o velho galo de briga inerte no chão, sob
o poleiro principal onde reinara poderoso por vários anos. A vida, a brabeza, o
mau humor, a peçonha no olhar o tinham abandonado naquela madrugada,
deixando-lhe apenas o corpo definhado com as penas já escassas a lembrar de
forma tênue a velha glória de campeão das rinhas.
A notícia foi uma devastação na vida de Seu Antônio. A mulher, ao
lhe passar a novidade trazida pela Ceição, sua ajudante nas tarefas domésticas,
providenciou um copo d’água fresquinho para lhe amortecer as trepidações do
coração. Seu Antônio bambeou o corpo, escureceu a vista por uns segundos e
soltou um longo suspiro, deixando-se cair em abandono sobre a cadeira de
balanço ao lado da janela. Olhou na parede a foto de Sansão nos áureos tempos,
no meio do tambor, o centro do ringue, com o opositor nocauteado a seus pés,
uma foto que saíra na primeira página d’A Voz do Povo. Não era homem de chorar,
mas não conseguiu reter uma lágrima teimosa que lhe brotou no cantinho do olho
esquerdo, aquele mesmo que piscava para o Sansão, no momento de liberar seu
golpe mais fulminante.
Passado o choque inicial, Seu Antônio pediu à mulher que lhe
arranjasse roupa de sair, pois iria providenciar enterro condigno para seu
amigo penoso. E retrucou com visível aborrecimento à proposta que ela lhe
fizera, para que enterrassem Sansão aos pés da mangueira frondosa, lá no fundo
do quintal.
- Sansão gostava tanto daquela mangueira, Tonho!
- De jeito maneira, Carmô! Sansão, pelo seu passado, merece
enterro de pompa.
E não houve jeito de demovê-lo do propósito de ir até o serviço
funerário da cidade, explicar sua intenção, rasgando elogios ao amigo defunto,
de tal modo convincente, que o agente funerário lhe prometeu ir até a
prefeitura, a fim de obter autorização para enterrar o galo no campo santo
local.
- Seu Vicente da Funerária, lhe dou prazo de duas horas para
resolver a questão! Vou estar em casa aguardando suas notícias.
Vicente, dono da Funerária Ascenção, localizada próxima ao
hospital da cidade, pegou o carro e foi de imediato até a prefeitura.
Como em cidades pequenas do interior todos se conhecem, não foi
difícil a Vicente convencer o encarregado de sepultamentos a concessão de um
pequeno espaço para o corpo de um galo de estimação, considerado pessoa da
família do Seu Antônio Apolinário.
- É melhor não desagradar o velho. – disse o funcionário, ao
aquiescer à proposta do papa-defuntos.
Com a autorização conseguida, Vicente providenciou um caixão
apropriado ao extinto, o qual mandou fazer com a devida urgência, aproveitando
para também incluí-lo no catálogo da funerária. Vai que outro maluco queira
enterrar seu bicho de estimação, com honras humanas, pensou o prestador de
serviços fúnebres.
Seu Antônio mandou convocar o neto, para dirigir seu carro, e
partiram, além dos dois, Ceição e Dona Carmô. O carro da Funerária Ascenção
seguia à frente levando o ataúde acanhado, enfeitado com cores sóbrias – afinal
Sansão não gostava de frufrus e balangandãs. O minúsculo cortejo seguiu pela
Rua Aristides Figueiredo, até chegar ao cemitério. Lá no fundo do espaço, sob a
sombra de uma paineira, Vicente mandou cavar uma pequena sepultura em que o
galo foi enterrado, sob o olhar doloroso da família e um pequeno discurso do
Seu Antônio, em que lembrou os feitos da vida do galináceo falecido.
No aniversário de morte, foi inaugurado sobre a sepultura o túmulo
de mármore que o velho aficionado em brigas de galo mandou construir para seu
amigo de penas.
Desde então, Seu Antônio só tem retrospectivas e não mais perspectivas. Seus olhos miram o retrovisor da vida. O que se apresenta radiante e colorido à sua frente, ele já não mais enxerga.
29 de maio de 2021
DEUS ME LIVRE
Deus me livre das falcatruas
Dos bichos de pé
Das blenorragias
Dos políticos de todas as
tendências
E das ideologias.
Deus me livre dos coriscos
Dos aguaceiros violentos
Dos pés de vento
E das promessas ariscas
Dos tempos de eleição.
Deus me livre dos futuros
Dos vírus e das bactérias
Que se anunciam
Em forma de previsão
E da queda de viadutos
Prontos ou em construção.
Deus me livre dos dias
Cheios de bons augúrios
Que morreram inócuos no
passado.
Se puder
Deus
Salve o meu presente
O nosso presente
E já ficarei muito grato.
30 de abril de 2021
MINHA MÃE
16 de abril de 2021
HISTÓRIA DE UM CARNAVAL
- Pegue seus panos de bunda e ponha-se daqui pra fora!
A mulher chegara ao seu
limite. E quando assim se expressa é porque o caldo havia entornado
definitivamente.
Ele tinha saído no sábado,
antes do almoço, vestido de índio: saiote de penas falsas sobre a sunga preta,
cocar de tosca feitura e as armas fingidas nas mãos: uma machadinha de madeira
e um pequeno arco com sua flechinha de bambu. Completavam a caracterização umas
tiras de esparadrapo à guisa de pintura tribal. O objetivo era participar da
abertura do Carnaval de Niterói, tradicionalmente feita pelo bloco Filhos da
Pauta, criado pelo pessoal da Imprensa da antiga capital do Estado do Rio de
Janeiro. Exatamente ao meio-dia do sábado, após concentração na Praça da
República, os foliões percorriam, ainda com parte do comércio aberta, a Avenida
Amaral Peixoto, em direção à estação das barcas, na Praça Arariboia. Após o
desfile, tudo terminava em libações alcoólicas de varar relógios e romper chão,
de não sair jornal no dia seguinte.
Ele não percorreria mil
metros, entre sua casa, na confluência da Mister Cunditt com a Padre Anchieta, e
a concentração, marcada para as onze horas em ponto. No Brasil, Carnaval é o
único evento que obedece rigorosamente ao horário e para o qual não há
defecção: ninguém se atrasa, ninguém falta. Contudo, a trabalhar contra todos
os seus planos, uma profusão de botequins pontuava o trajeto entre os dois
pontos. E, na empolgação da folia anunciada, ele foi calibrando, em cada um
deles, seu esqueleto fantasiado.
Aqui e ali encontrava
foliões que salpicavam as calçadas e a Praça do Rink. Os dois bares em diagonal
na esquina da Quinze de Novembro com Andrade Neves regurgitavam de fregueses,
todos com o espírito momesco saindo pelos poros, bem como algumas emanações de
álcool. Ele parou no primeiro, à esquerda da esquina, porque reconheceu no arlequim
tristonho seu vizinho do andar debaixo. Chegou eufórico, saltitante, mas foi
recebido sem entusiasmo: o vizinho enchia a cara porque estava realmente triste.
Aquilo não era uma fantasia de Carnaval, mas um disfarce para sua dor de amor: a
namorada lhe dera um perdido, três dias antes, e se mandara para Cabo Frio, com
a mala cheia de miçangas, paetês e más intenções, fora a bolsa repleta de
maquiagem, os biquínis, cada um menor que o outro, e duas ampolas de
lança-perfume argentino compradas a um muambeiro conhecido, que ele mesmo lhe
apresentara. Diante daquele quadro, não teve dúvidas, pediu que o garçom lhe
servisse um conhaque Dreher e um chope, para compartilhar o sofrimento do
amigo. Brindaram, ele ouviu as lamúrias do cara, não soube dar conselhos ou
orientações, mas se dispôs a beber com ele, como se bebessem a um morto
ilustre. Veio mais um conhaque, com algumas viradas de chope, enquanto o amigo
amaciava a dor a poder de steinhaeger versus cerveja preta, uma
combinação improvável, de consequências imprevisíveis.
Algum tempo depois, após se
despedir do vizinho, atravessou em diagonal a esquina e aportou no outro bar,
onde encontrou o Tucano, fantasiado de índio pataxó, que com ele combinara sair
no Filhos da Pauta, em homenagem a Arariboia. Iriam honrar a memória do índio
temiminó que ajudara os portugueses a expulsar os franceses do Rio de Janeiro
há centenas de anos. Não fosse esse heroísmo do índio, hoje não haveria
Carnaval no país. Talvez todos estivessem dançando um minueto.
Tucano, ao vê-lo atravessar
a esquina, já providenciara mais um copo e lhe serviu uma cerveja estupidamente
gelada, que seria acompanhada com lances de genebra e lascas de testículos de
boi empanados, de modo a forrar o estômago e prepará-los para as refregas
anunciadas. Do lado de fora do bar, na calçada da Quinze de Novembro, um grupo
cantava sambas de antigos carnavais, com acompanhamento competente de
instrumentos de percussão. O ambiente convidava. E eles acabaram ficando ali
por bom tempo. Até que decidiram partir em direção ao ponto inicial do desfile,
aonde chegariam em menos de quinze minutos, não fosse ter encontrado no bar da
esquina das ruas Doutor Bormann e José Clemente seu velho amigo e conterrâneo
Ferreirinha, frequentador assíduo do lugar.
Ferreirinha era um tipo
sistemático, desses de antigamente, cheio de liturgias, que só bebia em pé,
umbigo encostado ao balcão, junto à porta que dá para a José Clemente, lugar
estratégico para bater a cinza do cigarro queimado com frequência. Era comum
vê-lo ali sempre aos sábados, das onze às quatorze horas, como se fosse um
compromisso a que não pudesse faltar, mesmo se chovesse canivete. É que
Ferreirinha morava num apartamento acima do bar, postado no térreo de seu
prédio. Ferreirinha estava sempre vestido como se fosse trabalhar: calça de
linho, camisa de cambraia de cor única, sapatos lustrados, cabelo sustentado a poder
de creme de pentear, novidade que substituiu a velha brilhantina, e barba bem
escanhoada. No Carnaval, contudo, se permitia alguma alegoria: uma camisa
riscada e um chapéu de palhinha branca, com fita azul da cor da Portela, sua
escola do coração. E mais nada! Nem ruído carnavalesco Ferreirinha produzia:
parecia uma imagem de televisor sem som.
Os dois fantasiados
atravessaram a rua para falar com Ferreirinha. Tucano não o conhecia até então,
momento em que foi apresentado e teve ciência de uma breve biografia do portelense
discreto passada pelo amigo, com tantas e tais peripécias inusitadas, que
Tucano não pôde acreditar, já que ações e ator pareciam não se coadunar, não fazer
par. Ferreirinha, bonachão, sorriu um tanto amarelo e ofereceu cerveja aos
dois. Eles, embora já atrasados, não podiam fazer desfeita ao amigo e esticaram
as goelas e as conversas, fisgaram moelas e fígados de galinha, lembraram
outras tantas trapalhadas de adolescência e juventude na Miracema saudosa e
deram boas gargalhadas com o Ferreirinha. O entusiasmo aumentou, e resolveram
adereçar a cerveja com bicadas de Fogo Paulista, porque o Carnaval prometia.
Tudo pelo Rei Momo!
É preciso não se perder no
périplo dos dois. Este narrador está atento, porque o desfecho da história
compensa o sacrifício.
Assim que deram por fechada
a conta e passada a régua com o amigo sistemático, os foliões prometeram-se
solenemente seguir direto para a concentração, sem mais delongas. Para a
concentração, não, porque àquela altura o bloco já estaria chegando às
imediações da Galeria Gold Star, na metade da passarela, bem defronte à Caixa
Econômica. Melhor, então, que adentrassem a galeria pela Rua da Conceição, para
já sair direto em pleno desfile apoteótico da turba resoluta, que não estava
nem aí para o sol escaldante daquele sábado de verão.
Foi entrarem no corredor da
esquerda e perceberem o som da bateria lá longe. Tucano ponderou que o bloco
ainda deveria estar no esquenta na concentração, o que lhes dava ainda tempo de
tomar outra num dos dois botequins internos, sugestão que ele achou bastante atinada,
de modo que foram encostar-se ao balcão do bar. Desceram dois chopes com
colarinho, e mais dois, e outros dois. O som da bateria foi ficando cada vez
mais fraco, mais distante, menos perceptível. No quarto ou quinto chope, já não
ouviam mais nada e resolveram, então, dirigir-se à Praça da República, porque
imaginaram tratar-se da preparação para o início triunfante do desfile. Nessas
ocasiões, sempre se faz um silêncio respeitoso, alguns até com orações, pedidos
aos orixás, antes do primeiro ronco da cuíca.
Como os dois já não
estivessem deliberando em seu juízo perfeito, não perceberam que o bloco já
passara, já tinha chegado à Praça Arariboia e se dispersara ao fim da gloriosa
abertura do Carnaval da cidade. Na praça da concentração, indagaram de uns e
outros que por ali restavam e souberam que o bloco saíra exatamente ao
meio-dia, como programado, e que, àquela altura, já depois das quinze horas,
eles só encontrariam alguma fuzarca na Avenida Visconde do Rio Branco, para
onde o desfile embicou.
Saíram, assim, os foliões
retardatários na direção indicada, cortando caminho por entre ruas paralelas à
Avenida Amaral Peixoto, atravessando o Jardim São João, de modo a pegar o
refugo do bloco na altura da Marechal Deodoro.
E já não acharam mais nada.
Os foliões se dispersaram pelos bares da redondeza, uns aqui, outros ali;
alguns com seus instrumentos; outros levando alegorias de mão; todos suados,
esfalfados, necessitados de repor líquido antes que se desidratassem. Os de
maior poder aquisitivo foram para o Caneco Gelado, na Marquês de Caxias;
outros, para os bares e restaurantes do Mercado São Pedro; e todo o resto se
espalhou pela infinidade de bares, botequins e biroscas das redondezas.
Os dois amigos não se deram
por vencidos e resolveram esticar o desfile frustrado na mesma batida dos
demais foliões. E saíram de botequim em botequim, de bar em bar, pelo resto da
tarde, princípio da noite, alta noite, madrugada funda, cantando “Mamãe eu
quero”, “Você pensa que cachaça é água”, “As águas vão rolar”, e por aí afora.
Neste ponto, o narrador não
conseguiu mais ser testemunha do que se passou. Só mesmo na manhã da
Terça-feira Gorda, três dias após, é que flagrou a chegada daquele um a casa,
todo estropiado, recendendo a álcool, com a machadinha e o arco e flecha desconjuntados
à mão, cumprimentado a mulher, como se voltasse do trabalho, trazendo sua maleta
007 na mão. E ouviu em alto e bom som, para que não se fizesse de desentendido,
a frase fatídica:
- Pegue seus panos de bunda
e ponha-se daqui pra fora!
E não houve argumento,
explicação, pedido de desculpas que a demovessem da sentença proferida. A casa
era dela, a mobília era dela, as contas ela pagava; e ele era apenas o traste
que ela imaginara servir de parceiro. Ele, então, pediu que pelo menos pudesse
tomar um banho, escovar os dentes, fazer a trouxa e sair. Ela, magnânima,
consentiu, informando que iria ao apartamento da amiga logo abaixo do seu,
ficaria lá por cerca de meia hora e, ao voltar, não queria mais vê-lo.
Ele cumpriu seu ritual, pôs
as roupas numa mala velha de outros carnavais e saiu deixando a porta
encostada.
À noite, a mulher foi para o
baile de encerramento do Carnaval de Niterói no Clube Canto do Rio, acompanhada
da vizinha do andar de baixo, e cantou a plenos pulmões a liberdade que Momo lhe
proporcionava:
igual àquele que passou
Eu não brinquei
Você também não brincou”.*
Imagem colhida na Internet.
----------
1 de abril de 2021
ETERNIDADE?
Anunciando a noite que virá
Não te desassossegues nem te entregues
É apenas a vida cumprindo seu fado
Inapelável e ininterrupto
Como tem sido desde que o mundo é mundo.
Pega as coisas que não te pesem
Tua história teus amores teus sonhos
E te prepara para atravessar o Estige antigo
Com o barqueiro soturno que lá está.
Se levares a moeda em tua boca
Pode ser que do outro lado esteja a Eternidade.
22 de março de 2021
DIÁLOGO PLAUSÍVEL
O cara, espécie de secretário particular, faz anotações sobre os desejos finais do Seu Leocádio.
- O senhor vai querer ser enterrado ou
cremado?
- Não sei. É preciso responder agora?
Depois, querer é um verbo muito forte nesta pergunta.
- É apenas para orientar a família
sobre as providências a tomar depois de tudo.
- Isso ainda não decidi. Vou pensar
hoje à noite. Amanhã te respondo.
- O senhor vai querer banda de música
acompanhando o féretro?
- Ah! Isso vou querer! Vai me fazer
voltar à infância, quando ouvia a Furiosa. E anote aí: tocando Saudades
de Matão.
- Mas, Seu Leocádio, aí o senhor estará
morto: não terá como voltar à infância. Além disso, se for cremado, não haverá
féretro. Portanto não haverá banda e muito menos Saudades de Matão!
Seu Leocádio pensa, pensa, passa a mão
pelo queixo, como sempre faz diante de resoluções intrincadas, e diz:
- Isso pode esperar para quando eu
decidir se quero virar cinzas ou ser comido pelos vermes, não pode?
- Pode, mas é que as anotações acabam
não acontecendo. E flores? E igreja? E elogio fúnebre do padre Eustáquio? Isso
tudo o senhor tem de decidir. Por exemplo, aquele bibelô que o senhor trouxe de
Paris, quando lá esteve pela primeira vez, de quem será? Tenho de anotar isso
aqui também.
- Faça uma pergunta de cada vez, senão
me atrapalho. Mas o bibelô se quebrou há muito tempo.
- Ele foi restaurado naquela loja de
antiguidades. Não se lembra?
- É verdade! Tinha me esquecido disso.
E onde ele está agora então?
- Bem aí atrás do senhor, na estante de
livros. O Camões está escorado por ele.
- Camões?! Aquela edição histórica d’Os
Lusíadas que encontrei num sebo em Coimbra?!
- Sim, essa mesma! E o senhor tem de
pensar para quem deixar seus livros também. Sua neta Marietinha é muito estudiosa.
Acho que ela vai ficar muito grata, se o senhor lhe deixar seus livros.
- Boa lembrança! Mas a Marietinha não
está morando na Finlândia? Não foi para lá atrás daquele finlandês maluco, com
o nome cheio de letras dobradas e que vive correndo maratonas mundo afora?
- Sim, ela mesma. Ele é o Eerikki, o
marido dela. Mas a gente dá um jeito de fazer os livros chegarem lá. Ou ela vem
aqui para o seu velório e aproveita para levá-los na volta.
- É verdade! Pode ser. Mas eu queria
pensar melhor. Eu poderia doá-los à biblioteca da minha velha escola primária
lá na minha terra. Tenho de pensar melhor sobre isso. O que mais você
perguntou?
- Sobre o elogio do padre Eustáquio?
- Padre Eustáquio... Padre Eustáquio...
É melhor, não. Padre Eustáquio andou falando mal de um amigo nosso que morreu
ano passado. Não quero que ele use seus conhecimentos da minha vida, para me
desabonar na hora final. São coisas antigas, mas que podem voltar na hora. Não
vou querer isso.
- Ele não fará isso, Seu Leocádio. Com
certeza! O senhor é amigo dele, desde o movimento pela emancipação da cidade.
Se lembra?
- Sim, certamente! Mas é melhor, não.
Deixe o padre Eustáquio fora disso.
- E a igreja?
- Como igreja?! Vou ter de passar pela
igreja antes de ser enterrado? Eu quase nunca vou à igreja. Poucas vezes, para
não dizer que não vou.
- O senhor é quem decide. Sua família
talvez goste. É um conforto espiritual para os que ficam.
- É melhor pensar direito. Pensando
bem, se eu passar por lá, o Padre Eustáquio poderá fazer a oração fúnebre. Uma
boa recomendação final pode abrir portas. Nunca se sabe. E ele é meu amigo.
- Então... É o que eu falava, seu
Leocádio.
- Vou pensar melhor sobre isso também.
- Seu Leocádio, está ficando tudo para
depois. O senhor ainda não decidiu nada.
- Nem decidi morrer ainda! Você não
acha que está sendo precipitado demais? Tudo pode esperar.
Naquela noite, Seu Leocádio se recolheu
por volta das vinte e duas horas, após ter tomado uma sopinha de batata-baroa
rala, com pouco sal, e migas de pão, que a mulher chamava de consomê, e não se
levantou mais. Sem resolver nada sobre seu funeral, deitado ficou para o resto
da eternidade. Ou até que virasse cinzas, ou os vermes o comessem. Nunca se
saberá.
![]() |
Gustave Caillebotte, Retrato de homem escrevendo em seu escritório, 1835 (imagem colhida em wikiart.org). |