28 de agosto de 2020

NA CASA DA VOVÓ MARIQUINHA


Estou entrando na casa da minha bisavó, a Vovó Mariquinha, para mais uma visita à sua solidão.
Minha mãe era uma boa neta. Sempre visitava Vovó Mariquinha, nos finzinhos de tarde, comecinhos de noite, antes da hora do jantar, de modo a não quebrar a rotina da casa sossegada.
Vovó Mariquinha vivia sozinha numa casa grande e elevada, a que se tinha acesso por uma escada externa, com três quartos, sala espaçosa, cozinha comprida e alpendre para o lado de uma chácara cheia de árvores, na rua que entra em Carabuçu.
Devo confessar hoje que, à época, lá pelos meus oito-nove anos, a visita à Vovó Marquinha naquele horário jogava, na minha imaginação infantil, cores soturnas sobre a casa. A sala, único espaço a ter a lâmpada acesa, onde sentávamos para conversar com ela, diante de uma comprida mesa de madeira, ladeada por dois bancos também compridos, era exagerada para minha cabeça de menino: parecia uma vastidão. A decoração, se é que se poderia assim chamar a presença de poucos móveis, sobretudo uma cristaleira escura, era de austeridade espartana. A cozinha, localizada à direita, a partir dos fundos da sala, permanecia numa penumbra soturna, com suas panelas de alumínio refletindo mal e mal a luz da sala.
Porém o que me chamava a atenção era o relógio de parede, em madeira também escura, com dois bojos redondos protegidos por vidros, através de que era possível ver o movimento do pêndulo, com seu tique-taque cadenciado, a fazer escorrer bem devagarinho o tempo da conversa.
Eu ficava ali, absorto, contemplativo, como que hipnotizado pelo vaivém daquele mecanismo de precisão, tendo como fundo sonoro as vozes suaves da minha mãe e da minha bisavó.
Por essa época, Vovó Mariquinha deveria ter cerca oitenta anos, estava perfeitamente lúcida, como aliás permaneceu até seus dias finais, já com cento e dois anos, e não tinha nenhum medo em viver sem ninguém consigo. Fazia suas refeições, cuidava de sua casa, que estava sempre limpa, e gostava quando minha mãe lá aparecia, para trocar dedos de prosa sobre assuntos antigos, lembranças de um passado que a mim pareceria muito afundado no tempo, e outros contemporâneos, a que não faltavam a política e as notícias da família, as peripécias singelas da vila pequena.
Eu e meus irmãos, mais novos do que eu, ficávamos quietos, sem desassossego, sentados nos bancos, braços apoiados na mesa, aguardando que aquela conversa tivesse fim, e nós regressássemos a casa. Se ainda houvesse luz diurna, até corríamos pelo terreno espaçoso, onde ficava uma edícula em que moramos quando eu ainda era bem pequeno e meus irmãos ainda não existiam, da qual guardo na memória algumas poucas imagens e o cheiro da casa construída em pau-a-pique. Caso a escuridão da noite já se fizesse presente, o medo impedia que arredássemos o pé da sala.
E eu ficava olhando o pêndulo a balançar cadenciadamente, ouvindo ao mesmo tempo o tique-taque característico das engrenagens do relógio, como a pingar de modo dolente o tempo a escorrer suave e sem pressa sobre aqueles meus dias de infância.
E não me lembra mais a que hora chegávamos à casa da Vovó Mariquinha, quantas horas lá ficávamos – se é que chegasse a tanto! -, nem tampouco o caminho da volta.
Só me recordo bem do balanço do pêndulo, do tique-taque monótono e das vozes plácidas da minha bisavó e da minha mãe, tecendo com palavras a vida simples daqueles tempos.



elvira ig - Google+ Johann Georg Meyer von Bremen. Alemán (Bremen
Pintura de Meyer von Bremen (1813-1886), colhida da Internet.

4 comentários:

  1. Belas lembranças! lembro-me que, quando destronquei, numa topada, o "dedão" de um dos pés, fui até a casa de vovó Mariquinha e ela rezou uma simpatia para o dedo melhorar. Resultado ou não da reza dela, a inflamação sumiu em pouco tempo. E eu, criança, fiquei maravilhado e certo da garantia de cura para as futuras topadas.

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    1. Era bem por aí mesmo. É aquela velha história de que há mais coisas entre o céu e a terra do que sonha nossa vã filosofia.

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