O medo não escolhe idade, mas tem uma preferência muito
grande pelas crianças. Não sou psicólogo, por isso não sei de onde vem o medo.
Sei até para onde vai. Uma compreensão talvez um pouco melhor do que sobre a
dúvida ontológica do estar no mundo.
Em Carabuçu, pelo tempo em que lá vivi, até os meus
dezoito anos, desenvolvíamos os medos mais diversificados possíveis: de boi
bravo, de cachorro doido, de cobra venenosa, de marimbondo caçador e mangangá,
de corisco em dias de tempestade, de morcegos, de gatos à noite (De dia, não
havia problemas com eles.), de panarício (Eu tinha um medo quase pânico de
panarício!). Medos que poderia pôr na conta da existência física, do meio
ambiente, mas que eram muito bem administráveis por nós. Outros, contudo,
fugiam ao nosso controle: o medo do Saci-Pererê, da Mula-sem-cabeça e do
Lobisomem, entidades que rondavam a vila em noites soturnas de nossa meninice,
povoando histórias assombradas tão ao gosto da nossa gente cabocla.
E um outro, mais real, mais terrível que todos: o medo do
Carro Preto, uma entidade criada pelos adultos, para fazer o controle da
criançada. Menino que se afastasse muito de casa, corria o risco de ser roubado
(Não usávamos a palavra raptado.) pelo Carro Preto e desaparecer no oco do
mundo, para nunca mais. Alguns chegavam a dizer que o objetivo do Carro Preto
era levar as crianças para delas fazer sabão. Nem se cogitava em resgate a
troco de algum bem valioso. Era simplesmente sumir e voltar em forma de sabão. E
não poderia haver, até então, pavor pior do que ser transformado ingloriamente
numa barra de sabão.
Por essa altura a vila tinha pouquíssimos veículos, e
qualquer um que aparecesse, na cor preta, metia a criançada em polvorosa. Por
vezes, alguém dava o alarme de que vira um carro preto descendo o Morro do
Marta, na entrada da vila, e a criançada toda debandava, para esconder-se em
casa, o único local seguro na vila. Só o carro do seu César Portugal, um do
tipo cristaleira, como dizíamos, não infundia esse pavor em nós, por já ser
nosso antigo conhecido.
Como eu também desenvolvi não um medo, mas um certo
respeito, por aquilo que os mais velhos diziam de funesto sobre nossas
traquinagens, me precavia um pouco mais. Se um adulto alertasse para qualquer
perigo iminente de uma peripécia inconsequente, eu tinha aquilo como um
vaticínio. É que que fui testemunha ocular, durante uma dessas farras de
meninos na serraria aberta que ficava sob um frondoso pau-d’alho na subida do
morro da escola, da queda de um de nossos companheiros, do alto de um galho,
bem depois do aviso de um senhorzinho de cabeça branca que passava ao lado
- Cuidado aí, menino, que você vai acabar caindo e
quebrar o braço!
Não deu outra! Daí a pouco meu parceiro estava no chão,
há uns cinco metros abaixo do galho, com o braço partido.
Por isso é que passei a julgar que os adultos tivessem
parte com adivinhos, pessoas capazes de prever o futuro. E só para desgraças.
Nunca para boas novidades.
Depois que vim para a cidade grande, aquelas identidades
míticas como o Saci desapareceram. Nunca soube por aqui que tivesse aparecido
Saci em Niterói. Em Icaraí, por exemplo, onde cheguei em 1967, já desembaraçado
de todos esses medos. Lembro-me até de uma propaganda antiga sobre os
benefícios da energia elétrica: até mesmo esses assustadores bichos da noite
haviam desaparecido. É que a escuridão e o consequente medo dela propiciam a
que vejamos coisas que nem mesmo existem.
E aí estava a base para que a professora primária fizesse
a distinção entre substantivo concreto e substantivo abstrato. Este último
representava alguma coisa que só existia em nossa imaginação: o Saci, por
exemplo.
Claro que a explicação desses conceitos gramaticais não é
assim tão simples, mas ajuda a minimizar um pouco a sensação de medo que fazia
parte inerente à nossa vida.
Hoje vivemos aos sobressaltos, cheios de medo. Não de
coisas ou entidades criadas por nossa fértil imaginação. Mas um medo concreto
da violência das ruas, uma situação a que fomos levados há alguns anos e que só
vem-se agravando.
Hoje temos medo até de sair do portão de casa.
E este é um medo muito maior, muito pior, que não depende
apenas de nossos esforços individuais para vencê-lo.
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