9 de setembro de 2020

PROBLEMAS DA QUARENTENA

Definitivamente esta quarentena não está fazendo bem a ninguém.

Marido e mulher, cada um sentado em uma ponta do sofá, acompanham o telejornal da noite. Ela, por dizer que tem atenção múltipla, essa coisa que só mulher garante que tem, também futuca suas redes sociais ao celular, enquanto afirma que também acompanha o noticiário. O homem jamais saberá se é verdade, uma vez que morre de pavor de que isso seja realmente possível: um ser humano ser capaz de prestar atenção a duas coisas distintas ao mesmo tempo.

Num dos intervalos, o marido se levanta e começa a sair da sala. A mulher, de imediato, lhe pergunta:

- Onde está indo?

Aqui é preciso observar que, antes da pandemia, tal pergunta só ocorria no instante em que o marido sorrateiramente desferrolhava a porta da casa, na intenção de ir ao botequim beber umas e outras e confraternizar com qualquer um que estivesse com o umbigo encostado ao balcão – o Botequim Chalé está logo ali embaixo, com suas torneiras de chope a convidar quem se aproxima. Durante a pandemia, contudo, a saída de qualquer ambiente, por mais doméstico que seja, passa a ser suspeita, passível de inquirição pelos órgãos competentes, quer dizer, a mulher. Pois é o que está ocorrendo neste exato instante em que o narrador flagra a cena.

- Vou ao banheiro. – responde ele com certa má vontade.

- Fazer o quê? – volta a inquiridora, a levar adiante o inquérito administrativo recém-instaurado no ambiente sacrossanto do lar, submetido às estritas leis da quarentena.

- Prefiro não responder! – diz ele, já aborrecido, valendo-se do dispositivo constitucional de que o investigado não tem a obrigação de produzir provas que possam incriminá-lo.

E vai em direção ao banheiro.

Fica lá o tempo necessário para atender aos reclamos da sua biologia já um pouco desgastada pelo tempo e volta com a mesma pouca disposição para conversa com que saiu ainda há pouco.

A mulher continua a demonstrar, com toda a segurança, que vê o noticiário, futuca as redes sociais e ainda tem tempo para cronometrar a ida do marido ao banheiro.

- Achei que você demorou. O que esteve fazendo?

O marido repete a mesma justificativa anterior: não vai produzir provas contra si. Tem garantias da constituição para assim proceder. É um cidadão livre e se reserva o direito de só declarar algo diante de autoridade judicial concursada, empossada e paramentada para a ocasião. Se possível com aquela cabeleira branca de juízes ingleses.

- É que eu tenho notado que você tem ido ao banheiro com muita frequência e não estou gostando disso. Você deve procurar um médico para saber o que anda acontecendo com você. Pode ser problema de rim. Você tem urinado demais ultimamente.

- Problema de rim é quando não urina. Se estou urinando é porque o rim funciona, né não?

- Ah! Mas assim também já acho um pouco exagerado. Tudo tem de ter uma medida. Nem tanto ao mar, nem tanto à terra, não é assim que se diz? E também não vejo você bebendo água, para precisar de ir tanto ao banheiro. Aliás você não tem tomado água. Você pode estar se desidratando aos poucos, sem perceber.

O marido dá meia volta, para fugir à preocupação da mulher. Em vão. Agora como promotora começa a levantar indícios e sinais pretéritos.

- Se lembra do seu Ricardo, lá do nosso antigo prédio da Pereira da Silva?

O marido se lembra bem, evidentemente, pois ainda não é incomodado pelo alemão odioso. Antes de virem para seu endereço atual, moravam no apartamento de frente para o do senhor Ricardo e dona Mercedes, já idosos à época. Seu Ricardo era um vizinho de boa conversa, simpático. Tinha sido remador do Clube de Regatas, quando mais novo, e até pouco tempo mantivera o hábito de sair pela Baía de Guanabara molhando o casco de seu barco, um single skif branco, impulsionado por grandes remos apoiados às laterais.

No entanto, começara com um comportamento estranho, que foi denunciado à filha pelo proprietário do bar no térreo do edifício, que ficou preocupado com o que vira. É que seu Ricardo, com frequência usava o banheiro do bar, e José, o dono do estabelecimento, notou que, após o uso, o vaso ficava manchado de sangue. Depois disso seu Ricardo não durou muito. Ele, agindo assim, escondia da esposa e da filha seu problema, o que atrasou o tratamento de um fulminante câncer nos rins.

- Claro que eu sei! – respondeu ele já um tanto irritado – Mas eu não estou com o problema do seu Ricardo. Apenas tenho ido com mais frequência ao banheiro, porque já estou mais velho. E ainda fico feliz por meu rim estar funcionando bem. O problema é se ele não funcionar.

- Não sei por que homem se recusa a ir a médico, se tratar, prevenir qualquer tipo de doença. Nós mulheres somos precavidas: ao primeiro sinal de que alguma coisa não anda bem, logo corremos ao médico. Por isso é que morremos sempre depois de vocês. Você sabe a quantidade de viúva que há por aí. Lembra do micro-ônibus que nos levava ao teatro no Rio como era cheio de mulheres sozinhas, todas viúvas?

É claro que ele se lembrava. Num micro-ônibus lotado, era só ele de homem. Se sentia como um dois de paus no meio daquele bando de mulheres tagarelas, sem seus maridos, que já tinham ido para a cidade dos pés juntos. E ele ali, sozinho. Por isso é que talvez tivesse tanta segurança de que aquelas idas à miúde ao banheiro não fossem sinal de problemas.

- Lembra que a Marlene, aquela sua colega aposentada, contou como o marido dela também morreu de uma hora para outra, sem que fosse por problema de coração? Foi uma coisa assim, sem importância para ele, que acabou por levá-lo ao cemitério.

- Mulher, vira essa boca pra lá! Parece que está me agourando! Está querendo também ficar viúva, para ir ao teatro num micro-ônibus só de mulheres?

- Deus me livre! Morro de medo de ficar sozinha! Não quero trocar nossa cama de casal, por uma cama de viúva! Você não vai me fazer a desfeita de morrer e me deixar aqui.

A lógica da mulher escapa um pouco à compreensão masculina. Então o marido tenta contra-argumentar:

- Então, se eu não posso morrer antes, você é que terá de morrer, pela lógica. Aí eu é que ficarei viúvo. Mas não irei ao teatro naquele micro-ônibus. Pode ter certeza!

E solta uma gargalhada.

- Mas não vai mesmo! E eu não vou morrer, e deixar você aí soltinho, correndo atrás de sirigaita nenhuma. Está pensando que eu sou boba?

E continua a mulher a futucar seu celular, ao tempo em que também assiste ao telejornal e tece considerações acerca da vida e da saúde em geral e do seu marido em particular.

A quarentena está apenas pela metade, sem perspectivas de acabar. Ainda haverá muita oportunidade para que tal assunto volte à baila, entre na ordem do dia, esteja sobre a mesa de negociação. Nunca se sabe até onde podem chegar os problemas de fundo psicológico que esse diabo de vírus pode produzir. Esse casal é apenas e tão somente uma de suas vítimas atualmente.

E este narrador se exime de qualquer responsabilidade no desfecho da história.


AG] Excursão para Caxias no fim de semana do dia dos pais. - Clicsul.net

Imagem colhida na internet.

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