13 de novembro de 2020

DA PARTE DO ZÉ CÂNDIDO

Bateu palmas ao portão da chácara, bem perto de um pé de pau frondoso, certo tipo autonomeado Lacavinha Pederneiras, oriundo das bandas de Mata-Cavalos, nos afundados de terras goitacás.

- Boas tardes! Sou Lacavinha Pederneiras, dos Pederneiras campistas, e venho da parte do afamado Zé Cândido de Carvalho, do qual porto missiva de próprio punho e selo, destinada à sua pessoa.

O tipo parecia uma alegoria dos carnavais das Grandes Sociedades da década de vinte, que puxavam seus préstitos pela antiga Avenida Central, por essa altura já batizada com o nome do barão do império. Chapéu de palhinha, terno de riscado de corte apertado, cujo paletó se abotoava tronco acima, deixando apenas, na altura do gogó, espaço para a gravata borboleta de pois a enfeitar um pescoço fino, como de resto toda aquela figura saída de traços de J. Carlos. Uma bengala de ponteira prateada e sapatos de cromo preto reluzente, bico fino, com detalhes bordados no couro, em feitio de bolhas de sabão, mais um lenço de duas pontas azuis a saltarem do bolsinho do paletó completavam a personagem. Era propriamente uma figuraça!

O nome não me era desfamiliar. Já ouvira referências um tanto desabonadoras à sua pessoa em páginas impressas do mago da Baixada Campista. Lacavinha, a bem dizer, vivia de expedientes, sem emprego engastalhado nele por mais de noventa dias ou três luas, e se prestava a esse tipo comezinho de função: fazer favores fáceis para gente que não se queria dar o mínimo trabalho com coisas de somenos importância.

Falei em voz alta, que pudesse ser ouvida no meio do bulício da rua infestada de veículos com motores à explosão e o tropel de uma carroça que passava justamente naquele instante:

- Pois se adentre, seu Lacavinha Pederneiras! Se aprochegue de lá!

Lacavinha desferrolhou o portão de ferro fundido, de um verde musgo já descascado pelos anos, passou com sua figura esguia por apenas dois palmos de abertura, tornou a aferrolhar o dito portão e veio evoluindo em minha direção, como se flutuasse sobre o caminho tortuoso de pedras assentadas no chão, até o alpendre onde eu estava.

Convidei-o a se sentar, pedi à Carlinda que nos trouxesse um café fresquinho e tratei de pegar a correspondência que me estendeu com sua mãozinha magra, quase esquelética, unhas de brilho esmaltado bem aparadas.

- Pois muito bem, seu Lacavinha, vamos ver o que o Zé Cândido tem a me dizer em suas bem traçadas linhas!

Nesse entrementes é que me dei conta de que o remetente já não comia angu com feijão, já não folgava mais entre nós, motivo por que quis saber se era carta pretérita, deslembrada em alguma gaveta de escrivaninha e só agora, anos escorridos, chegada a seu destinatário.

O portador disse que não, que era coisa hodierna, recentemente vinda à luz, de tinta ainda úmida, através de psicografia realizada na cidade de Campos dos Goytacazes, com ipsilone e tudo, por pessoa idônea, há muito versada nessas práticas.

Ajeitei as meias cangalhas de leitura sobre o pau do nariz, rapei o gogo da garganta sem a cerimônia devida – mas enfim eu estava em meus domínios –, rompi o lacre do selo bordado JCC com jeito, a fim de não esparramar migalhas nas tábuas do alpendre e me pus a ler em silêncio, dando muxoxos aqui e ali, conforme os olhos iam vencendo os eitos da escrita de letra caprichada do campista afamado.

Depois dos cumprimentos de praxe a encabeçar a mancha de tinta da folha, fui-me inteirando das preocupações, perquirições e diretivas do remetente.

“Andei sabendo por vias travessas, aqui onde me homizio presentemente em forma espectral, que você anda tomando intencionamento de pôr pontos finais no meu inacabado romance sobre o Rei Baltazar, de bíblicas memórias. Sei, inclusive, que andou assediando mais de um familiar, cravando perguntas aqui e ali, levantando hipóteses mirabolantes, maquinando finalmentes para minha obra inconclusa e inacabada sobre o tal rei.

Devo asseverar com toda pompa e circunstância que ninguém no mundo dos viventes tem minha concessão para tais intencionamentos. O Rei Baltazar será lembrado apenas com as poucas palavras com que foi brindado no texto bíblico e nada mais. Ninguém vai puxar brasa para sua sardinha se prevalecendo do que eu já tinha alinhavado aí embaixo, enquanto mourejava na imprensa local e enchia as burras do povinho das rotativas com meus escritos.

Tenho dito!”

E lascou embaixo sua reconhecida assinatura de escritor notável.

Achei Zé Cândido amargurado, sorumbático, abespinhado. Só porque eu tivera – veja bem, amigo leitor! – eu tivera a ligeira ideia de completar a obra que ele deixara incompleta, por conta da visita antecipada da Indesejada. E apenas andei sondando, no rol dos meus mais chegados, se alguém, por acaso, assim descompromissadamente, conhecia pessoa das relações do grande escritor, algum herdeiro, talvez o seu editor. Mas tudo dentro da mais sutil averiguação, sem estardalhaço ou jactância. Não sou dado a espalhafato e ostentação. Sou mais recolhido que surucucu no choco.

Depois de lida a missiva do Além e após um suspiro de arrebentar estaca, que me veio bem lá do fundo da minha pessoa, indaguei do indigitado Lacavinha Pederneiras, ali presente, a pele macilenta de vela de sete dias, como responder a carta, já que eu não tinha o endereço correto e confirmado do destinatário.

Lacavinha sorriu, tirando com a unha comprida do mindinho direito uma sujeirinha do fura-bolo da mão esquerda, e me disse com o olhar perdido no pé de pau da entrada da chácara:

- É só me dizer de suas boas tenções, da sua reconsideração, que faço chegar ao autor da missiva esse seu pendor inopinado.

- Pois pode garantir lá a ele, do jeito que possível for, dentro das leis das ciências física e metafísica, que não está aqui aquele com quem se preocupar. Vou continuar lendo e relendo os livros que as rotativas imprimiram, mas não vou me arvorar a pôr um finalmente no que ficou sem fim. Sem fim ficou, sem fim ficará! Dou minha palavra!

Lacavinha Pederneiras elevou sua pouca pessoa da minha cadeira de palhinha da varanda, levantou o chapéu, fez uma mesura com o tronco magro fechado a botões e se despediu, sem me estender a mão. Desceu os quatro degraus até o caminho de pedra, começou a caminhada em que parecia flutuar, até que desapareceu como que esfumaçando, desvanecendo seu corpinho miúdo por entre a ramagem do pé de pau próximo ao portão da rua, de não ser divisado do outro lado, embaixo ou em cima de coisa alguma.

Zé Cândido certamente saberia da minha resposta.


Imagem em depositphotos.com.

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