7 de junho de 2013

ANTIGA CANÇÃO GRAVADA EM DISCO DE VINIL, 78rpm

(Publicado orginalmente em Gritos&Bochichos, em 6/6/2010.)
 
LADO A
Despachou o marido para a cidade dos pés juntos e partiu para a esbórnia. Antes, porém, doou as roupas do falecido para a caridade. Nas suas, pôs fogo e enterrou as cinzas no quintal. Comprou guarda-roupa novo, cheio de balangandãs, cheio de penduricalhos. Fez corte picado no cabelo. Mulher que faz corte picado no cabelo é um perigo, causa mais devastação que vento encanado, pensou de si para consigo. Que me aguardem! – concluiu o pensamento libertário.
Teve de aguentar aquele traste por vinte anos. Mão-de-vaca escolado, deu uma vida de mesquinharias, de folhas de alface e carne-seca ponta-de-agulha. Quando comia melhor, era aquele frango de padaria, com a farofa de brinde, nas ocasiões em que o padeiro resolvia fazer promoção. O agora defunto chegava com bafo de cerveja, alegava estar sem fome e ia dormir até a hora do jogo na televisão. Quando muito, ele se agarrava a uns livros velhos, sebentos. Se tivesse posto vidro moído no feijão, pode ser que tivesse abreviado a sensaboria de sua vida.
Nos últimos dois anos, após um insulto cerebral que o deixou meio adernado para o lado direito, voz estropiada, olho zambeta, suportou sobremaneira as agruras do inferno matrimonial. Nem dinheiro tinha para contratar ajudante que amenizasse sua trabalheira. E como dar banho naquele monte de banha repulsivo?
Depois que o miserável morreu, descobriu uma poupança polpuda na Caixa Econômica, que lhe foi passada por ser única herdeira, e com ela saiu fazendo visões e aparências modernas. Então era um tal de saia curta, roupa colorida, batom carmim, chapéus de abas larguíssimas. Até o andar ela modificou. Andava como se estivesse em passarela de desfile da Casa Masson.
Ainda rondavam sua memória as palavras ofensivas que endereçara ao finado, ao lado do caixão, para dar fechamento àquela relação mixuruca, mas que morto nenhum gostaria de ouvir. E tudo na segunda pessoa, tal qual letra de samba-canção:
- Vai-te, sovina miserento! Infernizaste minha vida desde o fim da lua-de-mel. Contigo comi o pão que o diabo amassou e só não desencarnei porque me apeguei a São Jorge, que é muito mais forte que tu.
Na missa de sétimo dia, encomendada a fim de não fazerem desabonações dela, já chegou com rapaz alugado a peso de trufa branca de terras de Itália, com o qual foi posteriormente tomar vinho do Porto Adriano Ramos Pinto em restaurante da Zona Sul. Era a vida que pedira a Deus. Quem mandou morrer, papudo?
LADO B
Foi abotoar o paletó logo no momento em que estava com dinheiro bastante para mandar a megera embora e engatilhar possibilidades com menina nova, fornida em carnes, de perna roliça, anca inchada. Isso era o que queria. No entanto estava ali, estendido num caixãozinho muito mixuruca, que a viúva lhe comprara. Mas o que fazer? Escondera o dinheiro de tal maneira, que a mulher ficou sem caixa para lhe dar um pijama de madeira mais ostentoso.
Impotente, de canela espichada, ainda teve de aturar, sem retrucar, cada palavra que ela lhe dirigia, em tom de sussurro, como se recitasse letra de samba-canção. Mas pode esperar, isso não vai ficar assim, não é mesmo? Neste ínterim, ficou decepcionado, porque descobriu que não viraria fantasma, nem alma penada, para atazanar o juízo da desinfeliz. Seu invólucro carnal era totalmente desprovido de visagem. Que maçada! – ainda pensou em forma de texto machadiano, de que tanto gostava.  Era oco, totalmente oco!
E imaginar que juntara todo aquele dinheiro às escondidas, para que ela não virasse uma zinha qualquer, frequentadora de Casa Sloper. E a comida que ela fazia? Nem na pensão de dona Preciosa comia tão mal em seus tempos de solteiro. Deu sorte de que ela não tenha posto vidro moído no feijão, senão era capaz de já ter morrido há mais tempo. Também de que adiantou morrer mais tarde, já que morreu antes dela? De nada serviram os trabalhos de um pai-de-santo da Pavuna com o frango de padaria que, às vezes, levava para casa. Nesses dias, nunca almoçava. Dizia que tinha comido, no botequim, pão com salame acompanhado de filas de cerveja. E como cozinhava mal: nem carne-seca sabia fazer, a coisa mais fácil do mundo para ficar boa!
Ainda foi ter aquele maldito derrame que lhe deixou metade do corpo paralisado, a fala desnorteada e o olho embaciado. Então é que pôde sentir quem era ela. Mas também não tinha mais como reagir. Às vezes ficava uma semana sem um bom banho, só com pano molhado pelo corpo, como se fosse um velho assoalho de tábuas, onde não se joga água para lavar.
Agora, estirado ali naquele caixãozinho furreca, rodeado de flores tristes, pôde enfim ter o último desejo permitido a um morto: que ela arranjasse moço novo, cheio de espertezas, e lhe torrasse até o último centavo da caderneta da Caixa, para ficar só com a pensão do INSS. Bem feito, doidivanas!
 
 
 
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