29 de maio de 2013

A TORCEDORA


Todo dia de jogo do time do falecido, a viúva chorava copiosamente. De remorso.

Em vida dele, vivia de implicância contra aquele seu gosto esquisito por futebol, e o ritual que ver uma partida do time de coração exigia. Em primeiro lugar, abria a bandeira no arremedo de varanda, muito mais um balcão sobre a rua movimentada, só para implicar com o vizinho de frente. Já paramentado com o uniforme completo do clube, exceção feita apenas à chuteira, pois usava tênis, sentava-se numa confortável cadeira, mesinha com a cerveja do lado direito, os tira-gostos num banquinho do lado esquerdo. Começado o jogo, só se levantava para ir ao banheiro no intervalo. E atendia apenas solicitação da mulher se se tratasse de incêndio incontrolável em algum cômodo do apartamento. Se fosse fogo menor, ela que jogasse um balde d’água em cima. Fora isso, não lhe dirigisse a palavra, sobretudo se seu time estivesse perdendo. E, pior, deveria servir-lhe nova cerveja, tão logo aquela acabasse.

A mulher tinha verdadeiro horror àquilo tudo. Não via hora de pôr um ponto final na extravagância do marido.

Até que um dia, aos quarenta e oito minutos do segundo tempo, na final do campeonato estadual, seu adorado time levou um gol em impedimento, que Sua Senhoria, aquele filho de uma que ronca e fuça, não marcou, e lá se foi a possiblidade de se tornar bicampeão e esfregar a faixa na cara do Marquinho Solidão, seu colega de repartição e odioso torcedor do inimigo. Aquilo foi tanto para seu coração, que ele empacotou ali mesmo, com estardalhaço, grunhindo como um porco ferido por potente peixeira. E esparramou seu cadáver defunto diante da tevê, a mulher gritando lá da cozinha para que ele parasse de fricote e se comportasse como um ser civilizado e não como um viquingue invadindo a costa da Islândia.

Ao chegar à sala, para inteirar-se da situação e tentar pôr ordem na casa, encontrou o marido em estado de passado desta para a melhor, em passivo baixado do rol dos viventes, dívida extinta.

Ela se desesperou.

Gritou pelos céus que lhe salvassem o marido. Deu-lhe socos no coração de partir costelas, fez respiração boca a boca, como se beijasse um leitão estertorando, mas não houve solução para a morte. O marido tinha sucumbido à roubalheira daquele juizinho safado. Os impropérios contra a genitora do árbitro foram as derradeiras palavras do homem. E nada mais de inconveniente saiu daquela boca cheia de dentes, emoldurada por bigodinho de cantor de seresta.

No velório, a viúva não se cansava de explicar a todos que a vinham cumprimentar como se dera o passamento daquela alma agora cândida e perfumada. Só lhe tinha palavras elogiosas. Todos os aborrecimentos que tivera com ele, sobretudo os relativos à sua paixão esportiva, desapareceram milagrosamente. Inclusive fez questão de que ele fosse enterrado completamente uniformizado e com a bandeira do clube sobre o caixão.

Depois que, pela capela mortuária, passaram todos os religiosos – das mais diversas religiões – encomendadores de almas, pediu encarecidamente aos presentes entoarem o hino do clube, o que causou certo constrangimento aos amigos torcedores de times rivais, como o Marquinho Solidão, que se fez de surdo-mudo naquele momento de solenidade funérea.

Enterrado o defunto, rezada a missa de sétimo dia, como purgação a viúva passou a assistir religiosamente a todos os jogos do time dele, mantido o mesmo ritual, embora não bebesse cerveja, e chorando copiosamente, nas derrotas, nos empates e nas vitórias, não distinguindo mesmo para que lado torcer, tão logo Sua Senhoria, aquele maldito vestido de papa-defunto que lhe matara o marido, desse início à partida.
Imagem em trivela.uol.com.br.

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