2 de março de 2013

TUDO QUE É SÓLIDO SE ESBOROA

Está inscrito na nossa consciência que a mulher é a dona da casa, a rainha do lar.

Você é casado, é a hipótese. Portanto está sob o jugo da mulher. Às vezes, há casais em que o homem tem a palavra final sobre o doméstico – este sofá vai ficar aqui, e pronto! -, mas, geralmente, tal território é quase todo feminino.
O homem, às vezes, se torna um estorvo, quando fica em casa. Esta é uma das pragas que rondam os aposentados. Param de trabalhar e ocupam um espaço e um tempo maior do que o conveniente, os quais não estavam previstos no contrato pré-nupcial. Aliás, não há contrato pré-nupcial que preveja o homem voltar para casa, vestir pijama e ficar vendo jogo na televisão, escarrapachado sobre o sofá da sala como um capado na engorda, tomando cerveja pelo gargalo da garrafa. Não há mulher que assine embaixo de uma cláusula dessas. Então começam a ocorrer os conflitos de jurisdição: Que território pertence a quem? Até onde se pode ir?

Ao homem, com certeza, cabe o menor dos minifúndios do lar. Aí, ele tenta ampliar seus domínios, enchendo a prateleira da geladeira com garrafas de cerveja e lascas de presunto de Parma, alguns queijos franceses cheios de fungos.
Não há nada mais tipicamente machista - no que esta palavra tem de carga positiva ou negativa - do que a ocupação cervejal deste tipo de território. Isto equivale, guardadas as devidas proporções, ao animal urinar em pontos do terreno que pretende reservar como seu domínio.

A mulher, por uma mera questão de convivência pacífica, absorve o golpe, desde que ele se restrinja apenas à menor prateleira. A menos que seja ela também pinguça, como várias que eu conheço e que preferem cerveja a iogurtes e queijos cottage de paladar zero. Caso contrário - e também sei de alguns casos -, na primeira crise de TPM, a esposa verte no ralo da pia algumas louras geladas compradas a peso de ouro naquele empório metido a besta, localizado no Santo Cristo. A sensação masculina, ao saber da sangria, é a da perda inapelável de aplicações na Bolsa.
Mas há outros pontos de atrito, outras zonas de conflito, tipo Faixa de Gaza, como a manutenção daquelas coleções de revistas que o parceiro adquire periodicamente na banca de revista do Antônio, ali em frente à agência bancária da Miguel de Frias. E guardadas anos a fio, com certa devoção religiosa, que só ele percebe e entende.

Num daqueles rompantes femininos, de que o bicho homem tem um medo terrível, originário lá da época das cavernas, ela resolve dar uma arrumação nos armários da casa, ordenar os papéis. É que não há mulher normal que goste de papel velho. Isto é coisa de homem. Do homem e seus gostos esquisitos. E ela começa a desalojar todo objeto papel de que o homem dispõe e deixa guardado, não se sabe por que e por quanto tempo, aqui, ali e acolá. Começam os papéis a ser desalojados de seus antigos locais de sono hibernal, sendo, então, dispostos sobre as camas, as cadeiras, as mesas e o chão, numa desarrumação acintosa. Por todos os lugares em que sua presença não seja prevista pelas normas do casamento e das leis gerais da arrumação doméstica.
E, se, enquanto estiveram guardados, estavam longe dos olhares de todos, agora ali, por todos os lados, começam a incomodar terrivelmente.

E a mulher determina:
- Dê um jeito nisso!

Ora, como dar jeito se ela é que fez ficar sem jeito? Estavam todos guardados. Na verdade, o jeito que ela pretende que se dê é jogar tudo fora, vender para ferro velho de papel, jogar no incinerador do prédio – quando havia incineradores em prédios -, menos nos lugares em que dormiam seu tranquilo sono.
Tenho um amigo que, há algum tempo, passou pelo constrangimento de ver sua coleção d’O Pasquim ser colocada no corredor do décimo terceiro andar, com um bilhete de despejo em cima. Quando chegou da faculdade onde dava aulas, à noite, quase teve um insulto cardíaco. E ameaçou não mais entrar em casa, caso sua coleção não entrasse de volta com ele. A esposa vacilou e acedeu.

A trégua durou até o dia seguinte, quando ele levou todos os jornais para doação ao diretório acadêmico. Foi como um desquite litigioso (À época, não havia divórcio.).
Agora, ali, no canto do quarto, está aquela pilha de revistas de viagem e turismo desalojada de seu repouso eterno, aguardando o “jeito” exigido pela parte forte da relação.

O homem abre uma cerveja, pensa na perdida coleção d’O Pasquim e se conforma. Vai encontrar um coração amigo que abrigue as revistas, sob módico valor, já que são usadas.
E não há como se acreditar nem nas coisas sólidas, porque elas acabam por se esboroar na atmosfera rarefeita das relações matrimoniais.
 
Imagem em mundopessoa.blogs.sapo.pt.

 

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