6 de março de 2013

FEIJÃO AO VIDRO MOÍDO


Para ficar bem ao gosto do marido, engrossou o caldo do feijão, porém, com vidro moído, em tão grande quantidade que dispensava a farinha de mandioca de que ele gostava tanto.
O homem, capitão de todos os naufrágios, traste de todas as canalhices, sentou-se à mesa e ainda exigiu a pimenta malagueta que ele mesmo curtira com alho, cebola, grãos de pimenta-do-reino, azeitona e azeite extravirgem de boa qualidade. A pimenta cuspia fogo. No dia seguinte, ele passou a cuspir sangue.

O misturado que fez, juntando aos dois ingredientes o arroz requentado, fatias de um bife do almoço com molho ferrugem acebolado, uma sobra de jiló guisado, desceu queimando, escalavrando o esôfago e chegando ao estômago como uma dose dupla de formicida Tatu.
Achou que fosse obra da demoníaca pimenta:

- Eta, pimentinha repuxada na ardência!
Suavizou a queimação com goles de cerveja preta, que bebia fazendo barulho goela abaixo, soltando um arroto espaventoso a cada trago.

Era um porco insuportável.
Mas no dia seguinte começou a botar os bofes para fora.

A mulher fizera uma promessa a São Clemente, aquela rua que fica paralela à Voluntários da Pátria, na cama do namorado novo, rapaz entregador do mercado, que descobriu na cliente a fonte das delícias. Nem na bancada das frutas da estação encontrara tanta doçura, quanto no corpo da mulher, Giovana de nome de batismo, Gigi na intimidade dos lençóis. Pelo menos, era o que ele lhe confessava.
Gigi resolvera aplicar o par de chifres de veado campeiro no marido, quando descobriu que, além das falhas de caráter de que era portador com méritos desde o berço mais pequetito, ele mantinha a jovem Ritinha, balconista da lanchonete da esquina, tão enfeitada quanto morto ilustre.

Do par de chifres ao feijão engrossado com vidro moído, foi questão de ouvir uns ipsilones bem solfejados ao ouvido durante o entrevero carnal numa tarde de sábado chuvoso. Nada há de mais sedutor que tarde de sábado chuvoso. Ainda mais nos braços fortes de entregador de mercado, jeitoso que só ele para dizer coisas bonitas para mulheres desinfelizes no casamento.
- Empacota o corno, Gigi minha flor! Vai ser a única coisa que vou lhe pedir na vida, Gigi minha flor. Depois a gente faz a nossa vida.

Discutiram depois, enquanto recolocavam as roupas, os pormenores da passagem que o marido deveria fazer e optaram pela solução do vidro moído, conforme Gigi lera em alguns dos contos de Os mágicos municipais, livro que ele lhe presenteara há pouco. Neles, a mulher sempre despachava o traste a poder de vidro moído, sem que a polícia aparecesse nas linhas finais das histórias, para prender a homicida.
O entregador se incumbiu de moer o vidro, que deu à mulher durante a entrega de uma encomenda do supermercado.

Ela só esperou que, na próxima noite de quarta-feira, Givanildo chegasse um pouco mais tostado do botequim da Rua Paulo Barreto, onde se reunia com os amigos para ver o jogo pela tevê, e não atinasse no tempero diferente do pretão maravilha.
Para que o marido não percebesse, caprichou no alho refogado com cebola e louro, torresminhos de toucinho defumado, cominho em pó e bastante pimenta-do-reino. Se ele estivesse no completo controle de seu discernimento, sem a cuca cheia de álcool, talvez notasse algo estranho. Naquele estado, porém, sentiu apenas o tempero caprichado de Giovana.

- Esse feijão está nos trinques, mulher! É o melhor que você já fez na vida.
E comia com a boca dos famintos.

Foi a sua desgraça!
Quando chegou ao hospital e tomou lavagem estomacal, já perdera mais sangue do que a cervejada bebida na véspera e empacotou por falta do combustível do corpo.

Sua alma desacorçoada ainda bambeou um pouco, antes de abandonar o corpo inerte na maca do corredor do hospital público.
Quando a polícia bateu à porta do apartamento de Giovana, ela já dera linha na pipa com o entregador, que teve a foto publicada no jornal das sete como procurado por ter induzido ao crime uma mulher até então recatada e pudica, como atestaram os vizinhos.

Não era a primeira vez que Marcílio, o entregador, aprontava para cima de mulheres mal-amadas. E Gigi fora apenas mais uma de suas vítimas. Sempre induzidas a despacharem o marido a poder de feijão ao vidro moído, uma arma quase infalível.
 

 Imagem colhida na Internet.

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