24 de fevereiro de 2013

O COLEIRO-DO-BREJO

(Ao meu irmão Guth, pelo seu aniversário, dia 25.)

Está ali na gaiola aquele coleiro-do-brejo que meu pai trocou por uma dúzia de pés de moleque. O garoto que o trouxe, quase da minha idade, é apaixonado pelo doce que minha mãe faz. E não lhe custava nada capturar o coleiro com seu alçapão de freixo, que nós dizíamos flecha.

Todo coleiro-do-brejo da minha infância tinha, quase que por fatalidade, de parar nas gaiolas de alguém como meu pai, que amava ver o bichinho cantando, com o dó de peito estreitinho, bem de acordo com o tamanho do peito minusclinho que os coleiros têm.
E nunca - ele, meu pai - se sentiu um monstro por tê-los engaiolados. Nem mesmo eu ou outra criança julgávamos os adultos como tal, só por terem pássaros nesta condição.
Os bichinhos eram muito bem tratados. Eram postos a tomar sol, aos primeiros raios da manhã; tinham sua residência - ou prisão - asseada todos os dias; suas provisões de água e alimento eram repostas com frequência; ganhavam brinquedinhos onde afiar os bicos e aparar as unhas; se ficassem doentes recebiam remédios e passes de rezadores famosos da vila; quando transportados, eram protegidos do sol abrasador e dos olhares de quebranto dos invejosos por uma capa de tecido branco ou cáqui sobre a gaiola, as duas cores que barravam mau-olhado.
Meu pai até mesmo conversava com eles, incentivando-os a cantarem cada vez mais e melhor, só para depois fazer inveja aos amigos.
E eram apresentados aos demais passarinheiros, com referências elogiosas às suas pessoas emplumadas, sempre com destaque para as qualidades de cantor, ainda que principiantes. E, quando estavam jururus, caidinhos, um tanto desconsolados na vida, havia constantemente uma palavra de consolo a lhes justificar o fraco desempenho canoro:
- É que agora estão na muda, mas já, já voltam a toda! E você vai ver como cantam bem!
Como os cães e os gatos, os papagaios e as tartarugas, as iguanas e os hamsters, as cobras e as calopsitas, que atualmente as pessoas mantêm prisioneiros em apartamentos, casas, quintais, canis, gatis, coleiras, mordaças, focinheiras, pequenas jaulas, caixas de areia, caixas ventiladas para transporte, e não se têm como cruéis. Ao contrário, hoje os donos desses bichos se consideram grandes amigos dos animais.
Eu mesmo nunca tive passarinho, de meu, aprisionado. Não porque achasse desumano - ou desanimal, quem saberá! Simplesmente porque não gostava. Meu irmão, sim. E tinha lá o seu, como meu pai, que lhe ensinava todas as regras de manejo, todos os cuidados a serem dispensados àquelas criaturinhas singelas, cuja presença deixava os lares modestos do interior com um ar de eterna felicidade por seu canto melodioso.
E era sempre um passarinho simples, silvestre, um tanto mocorongo como todos nós mesmos – humanos que vivíamos muito próximos da natureza: coleiro-do-brejo, coleirinho-laranjeira, papa-capim, canário-da-terra, papa-arroz, gaturama, trinca-ferro, bico-de-lacre, azulão, curió, pintassilgo, cardeal, galinho-da-serra, sabiá-laranjeira, araponga, avinhado e até mesmo sanhaço, que faz uma sujeira danada porque é comedor de mamão e tem o intestino solto.
E meu pai criou passarinho até um pouco antes de sua morte no início deste ano, o que me dava muita apreensão: ver meu velho e querido pai ser considerado pela legislação atual um criminoso da pior espécie, aquele a quem nem cabe o direito de pagar fiança. Tudo por seu amor aos bichinhos cantores de penas, que iluminaram sua longa vida de hábitos simples e sonhos corriqueiros.
Como agora ocorre com os donos de todos esses bichos que vivem em condições completamente anormais para a sua vida animal, em convívio com seres humanos urbanos, que os tratam como se fossem pessoas e os constrangem a se vestirem de gente, a desfilarem em blocos de carnaval animal, a comemorarem seus aniversários com festa, bolo e balões coloridos, a terem regras de comportamento humano, a padecerem de doenças típicas dos homens e terem de tomar Gardenal, por exemplo.
Está ali, logo ali, aquele coleiro-do-brejo...
E o meu pai já não está mais aqui para cuidar dele.

Imagem em passarosmi.blogspot.com.

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