3 de fevereiro de 2013

O SUICIDA

Tudo muito antigo.
O suicida bebeu um copo de cicuta e esperou ouvir a voz de Sócrates a chamá-lo para o convívio das sombras.
Este narrador não sabe onde o suicida encontrou a cicuta. Talvez numa antiga farmácia de manipulação de Santa Teresa, bairro antigo do Rio de Janeiro, que deve ter alguma farmácia de manipulação antiga, com venenos antigos do tempo dos gregos e dos romanos antigos. Tudo bem antigamente, como seu bigode de pontinhas viradas e sua bengala de ponteira de borracha.
O suicida começou a sentir uma sensação dolorosa no estômago, que logo tomou conta dos intestinos, e acabou por tirar-lhe a consciência.
Aí, no exato momento em que passava da condição de moribundo à de morto, já não sabia mais se ouvia a voz de Sócrates, de Platão ou de Aristóteles. De Valdir Amaral ou de Oduvaldo Cozzi. Mas sentiu-se ferrado, fodido mesmo (Para ser este narrador mais fiel ao sentimento do suicida.).
O suicida que toma cicuta pensa em estar fazendo um suicídio histórico, com aporte filosófico, mas no fim torna-se um cadáver como qualquer outro, talvez apenas um pouco mais composto do que é atropelado pelo trem da Central. Mas, enfim, também está morto.
E, estando já morto, em poucos segundos, já não ouve mais vozes, já não tem mais ideias, já não percebe absolutamente nada. Morreu, desencarnou, lá o que seja, e virou um pacote flácido, que logo em seguida atingiria o tal rigor mortis, obrigando a que alguém o limpe, o vista, o penteie, rapidamente.
Mas pode ocorrer que alguém perceba seu ato tresloucado e lhe dê um tapa na mão que leva o copo à boca e lhe grite:
- Alfredo, que loucura é essa, Alfredo?
E o copo caia pelo chão, espatifando-se, espalhando a água envenenada no piso antigo de ladrilho hidráulico, que ele adquirira numa loja da Rua Frei Caneca. Talvez não houvesse tempo de se evitar que seu gato de estimação, Alphonsus – assim mesmo grafado, em homenagem ao poeta Alphonsus de Guimaraens – lambesse a água mortal.
E, entre um suicídio histórico e um assassinato felino, ocorresse justamente o segundo, gerando um grande remorso para Alfredo, que, daí em diante, passaria a pensar fixamente em tentar um novo suicídio que não se frustrasse.
Por isso é que cogitou voltar até a farmácia antiga de Santa Teresa para comprar um novo vidrinho de cicuta. O farmacêutico, membro de uma seita fundamentalista niilista-pessimista, apoiava sempre os suicidas que o procuravam, como se estivesse dando materialidade a seus ideais filosóficos.
Alfredo morava num antigo apartamento apertado da Rua do Catete, próximo ao antigo palácio sede da República, onde, décadas atrás, certo presidente se deu um tiro no peito, como consta da história oficial.
Mas, como não apareceu o tal vizinho que lhe desse o tapa na mão, acabou ingerindo o copo de cicuta e em pouco tempo já não ouvia Sócrates, nem Cascatinha e Inhana.
E seu gato Alphonsus passou a miar desesperadamente pelo pequeno apartamento, até que o vizinho, incomodado, foi até lá para reclamar e encontrou o suicida deitado em seu antigo canapé, adquirido num antiquário da Rua do Lavradio, ao lado de um bilhete lavrado em letra de talhe caprichado, mas também antigo, que explicava seu gesto extremo: a modernidade o estava deixando louco.
Tudo muito antigo.

Papel de Parede - Gato Preto em uma Noite Assustadora
Imagem em ultradownloads.com.br

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