10 de fevereiro de 2013

O CEGO DO CAMPO DE SÃO BENTO

Campo de São Bento, Niterói-RJ (foto do autor).

Estou sentado num banco do Campo de São Bento, em Niterói, nesta manhã preguiçosa de domingo, examinando as fotos que acabo de fazer. Jane foi à missa das onze na Porciúncula de Santana, enquanto fui descansar, em meio à natureza, meu materialismo dietético (Para complicar, minha glicose anda no limite.).
O dia é mais calmo do que de costume, já que não se armou a tradicional feira de artesanato dos fins de semana. Imagino que os artesãos foram atrás dos seus blocos de carnaval.

A relativa quietude da manhã, quebrada apenas pelos poucos carros na avenida e o canto dos pássaros, é interrompida pelo pregão de um cego que vem lá ao longe pela alameda tortuosa do parque, batendo cadenciadamente sua bengala no asfalto. Sua voz ressoa forte e insistente.
Desde o momento em que o ouvi de início até agora, ele ainda não fez um segundo de silêncio. Seu discurso ininterrupto é sobre sua condição de cego e as tristezas e dificuldades que isto trouxe para sua vida. E tem a intenção de sensibilizar o coração empedernido das poucas pessoas que estão por ali. Ao tempo em que choraminga sua desventura, chama a atenção de seus possíveis ouvintes para a felicidade dos que ainda têm visão, em oposição à sua miserável sina. Ele, um pobre coitado que, de um para outro dia, perdeu a capacidade de enxergar.

E todos nós que enxergamos somos felizes, talvez até culpados, porque ainda desfrutamos deste dom. Mas ele se mantém firme, suportando a vida que Deus lhe reservou, a despeito de tudo, porque tudo estava em Seus planos. Ele é, em suas palavras, mais um predestinado da vontade de Deus para o sofrimento.
E, entre um e outro argumento sensibilizatório, repete indefinidamente seu pregão, como um mantra – ou seria como um estribilho de samba-enredo? -:

- Qualquer trocadinho... - e faz uma minúscula pausa - ... pode me ajudar!
Sou um tanto refratário a esses discursos que apelam para meus bons sentimentos. Não gosto de que me fiquem lembrando que devo ser generoso, que devo sentir comiseração pela desgraça de meu semelhante, ou que sou um afortunado diante das desgraças alheias.

Fernando Pessoa não gostava de que o pegassem pelo braço, de que o tentassem conduzir. Eu não gosto de que me digam o que sentir, o que padecer. Já sou emotivo demais, para ser ainda mais espicaçado em meu sentimentalismo fácil.
Eu sei sentir isso, sem que me intimem a tal com discursos piegas, mesmo vindo de um semelhante meu que sofre. Não venham me incutir uma culpa que não me cabe individualmente. A solidariedade deve ser espontânea, sem pressões, que não as de foro íntimo do solidário. Ou passa a ser imposto, taxa, tributo.

Já tive de purgar uma dívida gigantesca, quando menino e jovem: o pecado original. Adão e Eva caíram em pecado lá no Éden, por volta da criação do mundo, e isto me era cobrado até então. Não os autorizei a pecarem, não fui conivente, nem cúmplice.  Não alcovitei ninguém, nem me associei para aquele crime. Assim como não homiziei criminosos em minha casa. E mesmo com o batismo, em que tal mancha seria apagada de minha história, arranjaram-me mais outra montanha de malfeitos, pecados, vis omissões, vilanias incontáveis, pusilanimidades vergonhosas.
Quase comi o pão que o Diabo amassou com tanta culpa.

Portanto não venha o cego do Campo de São Bento, numa plácida manhã do domingo de carnaval, tentar restaurar o edifício de ignomínias em que eu vivia. Também luto contra uma hipertensão do globo ocular, sempre assombrado pelo desespero de uma possível cegueira, e não fico aí importunando meus iguais, que procuram a paz em meio a uma natureza belamente preservada.
Mas é só ele se aproximar um pouco mais do canto onde estou, para que eu pingue qualquer trocadinho - que não me fará a mínima falta - em sua sacola, pois não quero levar para o túmulo a culpa de não me ter sensibilizado com o sofrimento deste desafortunado cego, com sua metralhadora giratória a distribuir culpas a torto e a direito pelas belas alamedas do Campo de São Bento, numa calma manhã de carnaval.

Se eu estivesse na esbórnia do Cordão do Boitatá, na Praça Quinze, lá do outro lado da baía, talvez esta culpa não me assaltasse de modo tão acintoso.
Ceguinho miserável!

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