6 de julho de 2015

MINHA PESSOA ESTÁ COM UM PROBLEMA

(Para o amigo José Antônio Lahud Neto, dono da história.)


Imagem em gartic.uol.com.br.

A folhinha debulhava 1996; rigorosamente por aí, mais ou menos, nunca se sabe. Memória não é confiável. Até mesmo a de computador, que vive dando pau.

Setembrino é frentista do posto de combustível Chafariz, na esquina de Paulo Alves com Tiradentes, em Niterói.

O diretor, gerente, presidente e dono do posto, meu amigo Zé Antônio Lahud, botafoguense desapaixonado, chega naquela morna manhã, pelas nove, e vai em direção ao escritório, cumprimentando, na passagem, seus funcionários.

Tinha acabado de fumar, para que adentrasse o recinto de trabalho sem o risco de fazer ir pelos ares o sacrossanto lugar de onde tirava o sustento da família, dos empregados e de “uma cambada de mandriões do governo”, como gostava de dizer em relação aos inúmeros impostos que recolhia muito a contragosto.

Estrategicamente colocado ao pé da escada que dá acesso ao escritório, na parte superior da loja de conveniência, Setembrino, boné enterrado até os olhos, uniforme azul-marinho da empresa, diz-lhe, após responder ao cumprimento:

- Seu Zé Antônio, minha pessoa precisa ter uma conversa com a sua pessoa.

Zé Antônio só não engasgou, porque já tinha soltado a última baforada antes de cruzar a esquina. Mas conteve o riso, diante de frase tão estranha, para não melindrar aquele caboclo acobreado, cabelos de ondinhas e uma compleição física de Maguila em seus melhores dias.

- Setembrino, me dê meia hora, para organizar os papéis de ontem, e então você sobe para falar com a minha pessoa. – Ele já entrando no clima da retórica setembrina.

Talvez seja interessante dizer aqui que Zé Antônio é oriundo de pequena cidade do interior do Espírito Santo, São José do Calçado, portanto pessoa afeita a conviver com gente simples, de fala muitas vezes destrambelhada. No entanto, seu empregado o surpreendeu naquele instante.

A meia hora solicitada foi o tempo necessário para organizar os cheques que iria mandar a depósito, os que teria de segurar – borrachudos pré-datados de clientes cadastrados – e outras providências administrativas rotineiras.

Passado o tempo e nem mais um minuto, Setembrino bateu com os nós dos dedos na porta de vidro, à guisa de anúncio de que estava chegando.

- Pois muito bem, Setembrino, o que é que sua pessoa tem para falar com a minha pessoa?

O empregado, grande, porém humilde, desenterrou o boné da cabeça, solicitou autorização para sentar sua pessoa na cadeira postada diante da grande mesa de trabalho do patrão e começou a derramar seu rio de lágrimas, como diz a canção popular:

- Seu Zé Antônio, minha pessoa está com um problema sério. Minha pessoa tirou um fogão novo no crediário, pra fazer uma média com a dona patroa, e minha pessoa não conseguiu pagar as três últimas prestações. Aí a loja mandou o nome da minha pessoa para o SPC. E, aí, o senhor sabe, pobre, se perde o nome, está lascado. Então minha pessoa quer pedir um adiantamento de salário para sua pessoa, para limpar o nome de minha pessoa nesse tal de SPC. Se a sua pessoa puder fazer esse favor pela minha pessoa, minha pessoa vai ficar muito agradecida à sua pessoa.

Zé Antônio procurou conter o riso, controlou o mais que pôde sua pessoa, e perguntou quanto seria necessário para tirar o nome da pessoa do Setembrino daquele embaraço.

Pegou o talão de cheques, preencheu no valor solicitado e despachou o empregado dali, que ainda se voltou, dizendo ao sair – metade de sua pessoa para dentro da sala, metade para fora:

- Minha pessoa fica muito agradecida à sua pessoa, seu Zé Antônio. E pode contar com a minha pessoa pro que der e vier. Minha pessoa vai dar seu sangue pela firma!

Quando percebeu, pelo vidro da janela, que Setembrino já estava de volta ao seu posto de trabalho, Zé Antônio explodiu numa gargalhada sonorosa, espalhafatosa, de provocar acesso de tosse, crise aguda de enfisema pulmonar e até brotar água nos olhos.

Mas ajudou Setembrino a tirar sua pessoa de uma péssima situação.

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PS 1: Publicada originalmente em Gritos&Bochichos, em 21/1/2012.

PS 2: A pessoa do Zé Antônio vendeu o posto e parou de fumar. Agora o posto pode explodir à vontade.

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