(Para o amigo José Antônio Lahud Neto, dono da história.)
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Imagem em gartic.uol.com.br. |
A folhinha debulhava 1996; rigorosamente por aí, mais ou menos,
nunca se sabe. Memória não é confiável. Até mesmo a de computador, que vive
dando pau.
Setembrino é frentista do posto de
combustível Chafariz, na esquina de Paulo Alves com Tiradentes, em Niterói.
O diretor, gerente, presidente e
dono do posto, meu amigo Zé Antônio Lahud, botafoguense desapaixonado, chega
naquela morna manhã, pelas nove, e vai em direção ao escritório,
cumprimentando, na passagem, seus funcionários.
Tinha acabado de fumar, para que
adentrasse o recinto de trabalho sem o risco de fazer ir pelos ares o
sacrossanto lugar de onde tirava o sustento da família, dos empregados e de
“uma cambada de mandriões do governo”, como gostava de dizer em relação aos
inúmeros impostos que recolhia muito a contragosto.
Estrategicamente colocado ao pé da
escada que dá acesso ao escritório, na parte superior da loja de conveniência,
Setembrino, boné enterrado até os olhos, uniforme azul-marinho da empresa,
diz-lhe, após responder ao cumprimento:
- Seu Zé Antônio, minha pessoa
precisa ter uma conversa com a sua pessoa.
Zé Antônio só não engasgou, porque
já tinha soltado a última baforada antes de cruzar a esquina. Mas conteve o
riso, diante de frase tão estranha, para não melindrar aquele caboclo
acobreado, cabelos de ondinhas e uma compleição física de Maguila em seus
melhores dias.
- Setembrino, me dê meia hora,
para organizar os papéis de ontem, e então você sobe para falar com a minha
pessoa. – Ele já entrando no clima da retórica setembrina.
Talvez seja interessante dizer
aqui que Zé Antônio é oriundo de pequena cidade do interior do Espírito Santo,
São José do Calçado, portanto pessoa afeita a conviver com gente simples, de
fala muitas vezes destrambelhada. No entanto, seu empregado o surpreendeu
naquele instante.
A meia hora solicitada foi o tempo
necessário para organizar os cheques que iria mandar a depósito, os que teria
de segurar – borrachudos pré-datados de clientes cadastrados – e outras
providências administrativas rotineiras.
Passado o tempo e nem mais um
minuto, Setembrino bateu com os nós dos dedos na porta de vidro, à guisa de
anúncio de que estava chegando.
- Pois muito bem, Setembrino, o
que é que sua pessoa tem para falar com a minha pessoa?
O empregado, grande, porém
humilde, desenterrou o boné da cabeça, solicitou autorização para sentar sua
pessoa na cadeira postada diante da grande mesa de trabalho do patrão e começou
a derramar seu rio de lágrimas, como diz a canção popular:
- Seu Zé Antônio, minha pessoa
está com um problema sério. Minha pessoa tirou um fogão novo no crediário, pra
fazer uma média com a dona patroa, e minha pessoa não conseguiu pagar as três
últimas prestações. Aí a loja mandou o nome da minha pessoa para o SPC. E, aí,
o senhor sabe, pobre, se perde o nome, está lascado. Então minha pessoa quer
pedir um adiantamento de salário para sua pessoa, para limpar o nome de minha
pessoa nesse tal de SPC. Se a sua pessoa puder fazer esse favor pela minha
pessoa, minha pessoa vai ficar muito agradecida à sua pessoa.
Zé Antônio procurou conter o riso,
controlou o mais que pôde sua pessoa, e perguntou quanto seria necessário para
tirar o nome da pessoa do Setembrino daquele embaraço.
Pegou o talão de cheques,
preencheu no valor solicitado e despachou o empregado dali, que ainda se
voltou, dizendo ao sair – metade de sua pessoa para dentro da sala, metade para
fora:
- Minha pessoa fica muito
agradecida à sua pessoa, seu Zé Antônio. E pode contar com a minha pessoa pro
que der e vier. Minha pessoa vai dar seu sangue pela firma!
Quando percebeu, pelo vidro da
janela, que Setembrino já estava de volta ao seu posto de trabalho, Zé Antônio
explodiu numa gargalhada sonorosa, espalhafatosa, de provocar acesso de tosse,
crise aguda de enfisema pulmonar e até brotar água nos olhos.
Mas ajudou Setembrino a tirar sua
pessoa de uma péssima situação.
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PS 1: Publicada originalmente em Gritos&Bochichos, em 21/1/2012.
PS 2: A pessoa do Zé Antônio vendeu o posto e parou de fumar. Agora o posto pode explodir à vontade.
Foi! Minha pessoa é testemunha do fato.
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