(Publicado originalmente em Gritos&Bochichos em 19/4/2010.)
Sentiu um repuxo no baixo ventre que ia da hérnia
inguinal até a cicatriz da facada do lado esquerdo, logo abaixo da aba da
costela. Era feito um corisco rasgando o céu em noite escura de
tempestade. Disfarçou o incômodo inventando um passo esquisito para o forró que
dançava com a noiva, numa das ruelas da feira nordestina, no Centro Luís
Gonzaga de Tradições Nordestinas, em São Cristóvão, naquele sábado de maio. A
moça, dançarina emérita desse ritmo, estranhou a invencionice do noivo, mas
acompanhou o passo.
- Que invenção é essa, Genival?
Genival, no que ia responder, teve um segundo repuxo,
mais pestilento, e se dobrou todo, agora sem disfarçar. Gemeu no ouvido
dela:
- Das Dô, segura aí que tenho de ir correndo ao
quartinho! – ele ainda com o vocabulário da santa terrinha, que chamava de
quartinho a privada.
No recôndito daquele cômodo fétido, de higiene duvidosa
e pouco papel de serventia, amaldiçoou a hora em que resolvera destrinchar uma
buchada de bode, movida a doses de Serra Grande e Olho D’Água e aspergida por
jatos de pimenta-de-bode. Agora não adiantava mais! O estrago já estava feito.
E bem que Das Dores o prevenira para não abusar, pois recém-saído de uma
escandescência tratada a óleo de rícino. E você atendeu? Nem ele! Bem feito! –
pensou ele – Quem manda achar que sei tudo! Não podia ter ouvido Das Dô?
O malefício daquela diarreia se estendeu pelo resto da
noite e toda a madrugada, sem deixar o pobre Genival sossegado. Era o mal
afamado piriri-gangorra, que faz o padecente ora no vaso, ora na cama, ora na
cama, ora no vaso, por um período em que só os ensandecidos intestinos podem
saber, eles no comando da vida do depauperado Genival.
Só teve tempo de chegar a casa, sem se borrocar pelas
pernas abaixo, porque morava nas imediações do Campo de São Cristóvão, num
pequeno quarto atrás da loja em que trabalhava, na rua Bela. Nessa noite, Das
Dores não quis ficar com ele, porque não teria proveito de nada, mas
providenciou numa farmácia de plantão remédio eficaz para a moléstia. O
atendente até recomendou como tomar o medicamento para que o mal fosse sanado o
mais depressa possível, mas disse, ainda, que o estragado do bucho tinha de
sair todo. Não podia reter o troço lá dentro, para não complicar ainda mais a
situação de Genival.
Com o passar das horas, vinda a madrugada fresca, a
fornalha intestinal começou a abrandar, de modo que Genival conseguiu pegar no
sono por quase uma hora, já clareando o dia, antes de ser despertado por Das
Dores, preocupada em saber como o noivo havia passado.
Genival parecia um papel de embrulho amassado. Da sua
cor castanha de bugre, herança da avó pataxó, pouco restava: a pele como que
irradiava um amarelo fosco um tanto desbotado e os olhos estavam afundados em
olheiras azul-petróleo. Das Dores não gostou nada do que viu e logo chamou um
táxi para rebocar Genival para a emergência do hospital público mais próximo,
onde lhe fizeram uma lavagem intestinal do grosso ao delgado, passando pelas
pregas do fiofó. Coisa de luxo, de deixar o ambiente mais limpo que corredor
de nosocômio.
Não fosse essa iniciativa, como diria Das Dores
posteriormente, “possa ser que tivesse ficado viúva antes mesmo de botar
aliança no dedo esquerdo”, e soltava uma gargalhada frouxa, por se lembrar da
cara de Genival, quando adentrou o quarto dele naquela manhã desanuviada de
domingo.
Imagem em pontuandoanoticia.blogspot.com.
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