(Publicado originalmente em Gritos&Bochichos em 11/4/2010.)
Brotavam os anos 60. Com meus 15 anos, meu pai pergunta
se eu queria aprender a profissão de barbeiro, lá em nossa pequena vila de
Carabuçu. Eu, com convicção, disse-lhe: Não! Como resposta, ele foi taxativo:
Pode ir, que o Moreninho está esperando pra te ensinar.
Menino obediente, fui, sem discutir. Também era raro
menino discutir com o pai nessa época.
Moreninho, infelizmente já falecido, era uma dessas
pessoas interessantes que encontramos ao longo da vida: bom papo, vascaíno
doente e apaixonado por cinema. Tinha um caderno em que anotava os nomes dos
filmes a que assistira e dos seus atores principais, mais uma ou outra
observação importante. Naquela altura, lá no interior, não ligávamos para
diretores. Quem levava o cinéfilo à sala escura eram os atores. Para marcar
essas paixões indelevelmente, atribuiu aos quatro filhos do primeiro casamento
– período em que convivi com ele – os seguintes nomes: Ademir, em homenagem ao
grande goleador vascaíno; Carmem Lúcia, em homenagem a uma nadadora também do
time; Bellini, em homenagem ao zagueiro do Vasco e da Seleção Brasileira de 58;
Edilamar, em homenagem à atriz americana Eddy Lammar, uma das suas paixões na
tela. Minha memória para por aí, nesses filhos.
Ia eu levando o aprendizado de barbeiro meio a
contragosto, apenas porque meu pai assim determinara.
Próximo à barbearia – tudo na vila é próximo –,
ficava a farmácia do José Resende, o Zé da Farmácia, onde trabalhava como
prático o meu amigo Ronaldo Salles. Estávamos sempre de conversa e, nas horas
vagas, ia à farmácia para ler gibis, que ficavam em duas grandes gavetas na
parte de baixo das prateleiras de remédios e do lado do freguês. Zé era um
aficionado por gibis. E isso era muito bom para os meninos que os podiam ler
sem gastar nada, pois Zé não fazia conta dessas coisas.
Aliado ao prazer da leitura dos gibis, vinha em minhas
narinas o cheiro gostoso das drogas, dos álcoois e dos éteres. E a farmácia
estava sempre limpinha, sempre arrumada, diferentemente do salão de barbeiro
com seu chão com cabelos cortados, varrido de vez em quando.
Talvez por tudo isso é que tinha lá desejos de me
tornar, também, prático de farmácia e sair aplicando injeções a três por
quatro, aviar receitas, fazer curativo nas meninas. Ronaldo, no entanto, sempre
me dizia que não era bem assim, as coisas ali eram complicadas.
Até que, certa tarde, mandou-me chamar na barbearia
para ver algo. Estava ele nos cuidados de uma bicheira horrorosa na cabeça de
Caburé, trabalhador rural que nos fins de semana ia à vila tomar cachaça, e que
acabou por envolver-se numa briga com outro bêbado, o Argeu. Na queda, Caburé
bateu com a cabeça no meio-fio da rua e agora estava ali com a ferida botando
bichos por todos os lados. A visão era tenebrosa. Mas fiquei atento, vendo os
cuidados de Ronaldo. Aquilo já balançou um pouco meus planos.
Daí mais uns dias, Ronaldo manda me chamar, novamente,
para ver seu trabalho.
Havia chegado à vila um circo de nome Gran Circo
Panamericano, que, dentre outras atrações, trazia animais. Um rapaz,
funcionário do circo, meteu-se a urinar próximo à jaula das hienas. Sem
pestanejar, uma das feras deu-lhe uma mordida bem lá na área de lazer, que lhe
fez um furo de lado a lado. Desesperado, correu à farmácia.
Agora lá estava o Ronaldo no trabalho de curar o pinto
do abestalhado circense, passando algodões, mertiolate e outras coisas mais.
Virou-se para mim e perguntou:
- Ainda quer trabalhar em farmácia?
Abortei o plano na hora e botei na cabeça que, dali em
diante, iria fazer Letras. E eu lá sou bobo?!
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Lee Dubin, Barbearia (em liveinternet.ru). |
Muito bom, seo Saint-Clair. O amigo pode não ter se tornado farmacêutico mas, sabe como preparar um bom remédio.
ResponderExcluirBravo. Como é bom ter/conhecer vc Saint-Clair. Nada de Barbeiro ou Farmacêutico. Letras e Fotos, Vc É O Cara!!! Saudações
ResponderExcluirObrigado pela leitura e pelo comentário.
ExcluirAinda bem que foram outras excelentes escolhas. As crônicas então maravilhosas.
ResponderExcluirObrigado, Beth!
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