(Ao amigo José Luiz Padilha, destinatário da carta, e aos primos Adriano e Bedu.)
Organizando as coisas que foram retiradas de seus
cantos, por conta de uma obra em casa, recuperei a cópia de uma carta enviada,
nos anos 80, ao meu velho e querido amigo José Luiz Padilha, então morador de Carabuçu, nossa
terrinha natal.
À época, escreviam-se cartas. As comunicações ainda não
estavam essa maravilha de hoje, com as mídias eletrônicas a facilitarem o
contato entre os amigos. Assim, vez em quando, cometia cartas: à família, aos
amigos, a uma ou outra menina que havia engatilhado na mira dos olhos e do
coração, coisa esta última que não gerou nenhuma consequência – benéfica ou
maléfica – na minha vida.
Para a curiosidade dos meus amigos leitores, reproduzo
a dita carta aqui, o mais próximo possível de sua conformação gráfica. Ela foi
datilografada.
Aí vai.
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Olivetti Lettera 22, a máquina em que cometia minhas cartas (imagem em mercadolivre.com.br) |
Prezado Padilha,
adriano,
bedu e eu comíamos uma rabada com agrião
e
batata,
ao
som de duas antárticas estupidamente,
quando
falamos de você e dessa sua cabeça grandi-
loquente.
dizíamos,
então, que os seus grilos e sonhos
são
demais para minha cabeça pequena,
mais
preocupada com o se safar dos problemas
do mundo
que
com as indagações de ordem metafísico-sentimental do estar-no-mundo e suas
consequentes projeções na velhice, essa fatalidade a que estaremos sujeitos
caso a bosta do coração que vocifera no peito
não
fizer papel miserável antes do final do
primeiro tempo.
nossos
duplos filhos, de nós quatro, estão ainda
na
preliminar dos dentes-de-leite
e
nós, com o preparo físico comprometido,
por
incursões erótico-etílico-profissionais
no
jogo principal a que assistem impávidos
o
leão do imposto de renda
a
caderneta de poupança
os
juros e a correção monetária
e
aquela indefectível certeza de que ainda despertamos sentimentos escusos na
mulher do vizinho
e
a bunda da rita cadillac rodando na televisão.
não
há como pensar.
foi
aí que o bedu disse que você tem esse tal medo
de
envelhecer.
foi
aí que eu disse que o vovô chico albino morreu pobre, esquelético, esclerótico,
um espectro de gente, em um bairro qualquer de caxias, que por obrigação
se
chama 25 de agosto, já roçando a beira dos noventa anos de idade.
como
se, quem vivesse tanto,
essa
merda de vida deixasse viver em paz.
foi
aí que eu disse que também o zé fábio tem
os
grilos altíssimos do receio de ficar velho
e
brocha, naturalmente. mas já há muitos anos.
talvez
ele tenha mesmo como missão na vida
estar
chamando nossa atenção descuidada
para
o tobogã irreversível da queda de produção,
de
cabelo, de tesão e de vitalidade. aí o inps
para
nos reconfortar. que merda é o jair soares!*
o
pior, no entanto, é morrer novo, devendo vida,
como
quem sai de fininho, sem querer, querendo,
de
uma festa em casa de gente pobre, para cujo
banquete
se convidassem as iguarias ao invés dos comensais.
o
vovô não saiu de fininho. saiu pela porta da
frente,
todo quebrado, como que saísse de uma
luta
a que sucumbira de modo incontestável.
e
na aparência dormente dos mortos antigos que
levam
um pouco da ciência de uma vida que ele
mesmo
esqueceu de viver nesses últimos anos,
qual
o mago da poção miraculosa cuja fórmula põe ao fogo para não cair em mãos de
estranhos e criminosos. não direi que lá foi o meu avô, porque simplesmente não
há o lá, o onde chegar. muito menos desencantou-se, como afirmou o flávio
rangel pela morte do vinícius de morais. que essa vida não é encanto.
simplesmente
acabou-se, como se acabam o doce, a bala azedinha, o gosto de pano de
guarda-chuva encardido
na
boca.
a
diferença é que o bicho-homem tem memória, o que dele há de ficar.
a
verdade é que temos de glorificar a vida. temos de valorizar a capacidade de
resistir
e
não a grandeza da batalha final.
os
mortos são os desaparecidos.
os
outros é que ficam, mesmo perdidos nesse planeta
de
ódio e violência.
adriano,
bedu e eu estraçalhávamos com a voracidade dos nossos trinta e tais anos aquela
rabada de boi, assessorada por goles dourados de antártica, mas comíamos e
bebíamos aos que nascem e nasceram ontem. nós vamos descansar para o segundo
tempo,
caso
não sejamos barrados pelo técnico
em
virtude de nosso baixo rendimento.
os
dentes-de-leite, fazendo a partida preliminar,
ainda
tocam a bola de primeira,
batem
corner sem a malícia dos anos
e,
principalmente, ficam na barreira
sem
a preocupação de proteger os culhões contra o chute do time contendor.
e
nós, de barriga cheia, os olhos meio repuxados
pela
claridade estonteante da luz no fim do túnel, rimos superiores à incapacidade,
inconsequência
e
imaturidade
dessas
pobres crianças que pusemos no mundo
não
por um desígnio dos céus
nem
por um prazer egoístico de procriar
mas
sobretudo pela certeza de que eles
serão
melhores
maiores
mais bonitas
mais amantes
que
nós.
pela
estranha e compreensível esperança humana
de
que o espetáculo dantesco que vivemos
não
pode – não deve – não será passado a todas
essas
crianças que por aí choram
sofrem
buscam
riem
e
têm necessariamente de encontrar A PAZ.
ou
não poderei morrer velho, esquelético e esclerótico, todo quebrado, pela porta
da frente, sem a vergonha da derrota, ainda que derrotado, estampada no rosto.
que
vivam os vivos!
um abração do
SClair
3/6/82
*desculpe-me
o palavrão!
O negócio é vez por outra, remexer nos móveis da casa. Quem sabe não encontremos um pedacinho da gente vivinho pra se gostar.
ResponderExcluirMas não é, Paulo Laurindo! É isso mesmo o que acontece.
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