(Em memória de meu pai, Argemiro.)
Lá por seus noventa e dois
anos, meu pai começou a apresentar os primeiros sintomas de demência senil,
expressão que mamãe odeia, sobretudo com episódios noturnos. Embora o
tratamento a que se submetera tenha dado resultados que impressionaram seu
médico, o quadro era de progressão do mal. Ele apresentava algumas
calcificações no lobo frontal, o que lhe causava as perturbações comuns à
doença.
Aos poucos, contudo, foi
entrando num processo de perda progressiva do senso da realidade. Ou pelo menos
daquilo que nos parecia a realidade palpável do cotidiano. Até que chegou ao
fim de sua existência, aos noventa e cinco anos, já sem reconhecer os filhos e
netos, sem falar, sem andar, sem se alimentar normalmente. Talvez só reconhecesse
minha mãe, sua mulher de muitos e muitos janeiros. Isto é, ao meu juízo, um
tipo de ingratidão que a natureza nos proporciona: permite que o corpo
sobreviva, sem qualidade de vida, embora a mente já há muito tenha procurado
outros voos, outras paragens.
Um dos episódios que me marcaram
– e que estou aqui trazendo aos meus caros leitores – foi o de seu desejo de
reencontrar a mãe.
Por essa época, ele ainda
andava, tinha certos momentos de lucidez, e foi tomado pela vontade infantil de
rever a mãe. Queria de todas as formas que ela o viesse visitar. Pediu-me,
inclusive, para que eu telefonasse para ela – um telefone inexistente, para uma
pessoa já inexistente –, porque precisava muito dela. E me disse com jeito de
menino chorão:
- Meu filho, eu sem ela
não sou nada! Mas não lhe diga que estou neste estado.
Sua mãe tinha falecido
tragicamente há uns sessenta anos. Desgraçadamente ele a viu em sua cena de
morte, enforcada no baldrame do curral da propriedade do meu avô, acometida que
fora por uma depressão violenta, depois que tivera a notícia de que estaria com
câncer. Tal imagem, tenho certeza, jamais lhe saiu da memória. E, por isso
mesmo, em nossa casa, era tabu tocar no nome da vovó Benedita, para que não se
reabrissem velhas feridas incuráveis.
Como eu dissesse que não
sabia o telefone dela, ele exigiu que o levássemos a Carabuçu, vilazinha onde
nascemos todos, e quarto distrito de Bom Jesus do Itabapoana. Sem ter como lhe
negar isto, mas sabendo que seria missão impossível encontrá-la, combinei com
minha irmã Verônica e minha sobrinha Fernanda que sairíamos, tal exército Brancaleone,
à procura do seu graal perdido.
Pegamos a estrada do lado
capixaba, margeando o Rio Itabapoana, num dos caminhos para chegar até a vila, a qual estrada atravessa a cidade de Apiacá, antes de se voltar ao lado fluminense. E fomos
comentando durante o trajeto que as coisas estavam muito mudadas, que Carabuçu
já não era mais a mesma vila que ele deixara, que talvez fosse difícil
encontrar a casa da vovó Benedita, localizada na rua da farmácia do Antônio
Miranda, como ele informara com veemência para nós.
Entrando em Apiacá,
começamos a nos admirar como as coisas estavam mudadas, de quase se não as
reconhecerem, com casas novas, asfalto nas ruas, tentando fingir que ali era
Carabuçu. Na praça principal da cidade, bem em frente à igreja, parei o carro,
desci e fui até uma banca de revistas fingir que tomaria informações acerca da
localização da casa da dona Benedita, mulher do seu Chico Albino, que ficava na
rua da farmácia do Antônio Miranda.
Voltei algum tempo depois,
dizendo que não havia obtido a informação, que as pessoas não sabiam, que talvez
ela se tivesse mudado para Duque de Caxias há muito, quando a filha – e irmã do
meu pai –, Filhota, para lá também se fora, após o fim do casamento, e levando
uma fieira de seus tantos filhos, desde adultos até meninos imberbes.
Retomei a marcha do carro,
atravessamos a ponte sobre o Itabapoana, pegamos o asfalto de volta para Bom
Jesus, lamentado a frustração de não encontrar vovó Benedita.
Alterando um pouco a voz, homem
sempre equilibrado que era, mostrou seu descontentamento conosco:
- Vocês não servem nem
para encontrar a casa da mamãe!
E acabamos a viagem com um
nó na garganta, os olhos marejados de lágrimas, porque não conseguimos atender
ao singelo desejo de o filho encontrar sua mãe.
Tenho a impressão de que
já contei essa mesma história, em outro texto, mas o estou fazendo novamente,
com minhas desculpas. É que, às vezes, não consigo tirar esse nó da minha vida
também.
Perdão, amigos!
![]() |
Ilustração para o filme L'armata Brancaleone, de Mario Monicelli (em insiemiperpieve.it). |
Mestre, como você mesmo diz "é de brotar água nos olhos", e brotou nos meus.
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