Já lhes falei por aí do
Isaías Bonga², negro retinto, carreiro dos bons da minha vilazinha de Carabuçu
e ponta-esquerda rompedor do glorioso Liberdade Esporte Clube.
Era um homem atarracado,
forte, mas afável no trato com as pessoas. Não tanto com a bola, com a qual a
intimidade não chegava às raias de minha querida, meu amorzinho. Mas sabia dar
suas carreiras pela esquerda, ir até o fundo e cruzar para o meio da área, onde
certamente iria encontrar o Jair Bodinho, baixinho que só ele, contudo capaz de
fazer gols incríveis na defesa adversária.
Isaías viveu sua vida de
interiorano, pegando duro no trabalho e jogando seus joguinhos do Campeonato
Bonjesuense de Futebol, em defesa das cores azul e branca do Liberdade. Tinha
sido até bem tarde um solteirão reconhecido. Porém com a viuvez da Tonica,
mulher do Cocote, o goleiro do time, Isaías resolveu juntar sua pobreza com a dela.
E viviam na casinha dele, para os lados do Valão Liberdade, vizinhos do Juca
Jacó.
O tempo ia passando e a
relação dos dois piorando. Talvez nunca se tivessem dado muito bem mesmo, mas
se conformaram em viver juntos, nessa necessidade danada de um homem ter uma
mulher, de uma mulher ter um homem. Um aquecendo o outro nas noites frias da
vila, servindo de companhia, para que a existência não fosse de tudo sem
serventia.
E bebia, o Isaías!
Até que certo fim de dia
de calor, estando ele sem camisa à janela da casa, de olho no pouco movimento
da rua, caiu debruçado sobre a soleira, cabeça pendida para o lado de fora.
Pouco depois, volta Tonica
da rua e vê seu homem naquela posição e logo pensou mal dele: Vai ver já bebeu
todas e dormiu dependurado na janela igual a um fardo de carne-seca. Entrou em
casa e foi acordá-lo. Contudo o seu era o sono eterno. Dele já não mais
acordaria.
Tonica saiu para a rua
novamente para dar a notícia da morte do marido. Os vizinhos foram os primeiros
a chegar e a remover o corpo daquela posição incômoda – Lá isso é jeito de
morrer!, disse um – e colocá-lo sobre a cama. Uns e outros começaram a indagar
de Tonica como se dera aquilo, e Tonica não tinha muitas explicações, a não ser
o fato de já o ter encontrado prostrado sobre a soleira da janela. Alguns mais
maldosos logo desconfiaram da Tonica, em virtude dos últimos tempos de
desentendimentos quase diários. Vai ver – suspeitaram outros – ela tenha posto
formicida Tatu no feijão do pobre coitado, pois fora um pouco depois da janta
que ele entregou a alma, partiu dessa para a pior, espichou as canelas, deu com
os costados na cerca, ou lá o que o valha.
Quando ela soube que
pairava forte desconfiança sobre sua pessoa, botou a boca no mundo a dizer que
nunca faria uma coisa daquelas, que não era criminosa, que seu natural era de
paz. E garantia a todos que o Isaías morrera, porque bebia muito.
Enquanto se providenciava
o caixão e se decidia sobre em que tipo de cova sepultá-lo, colocaram o corpo do
ex-ponta-esquerda sobre uma mesa comprida, coberto por um lençol branco da
cabeça aos pés. Os vizinhos e amigos ficaram ali velando o morto. Umas senhoras
piedosas puxavam alguma reza para encomendar a alma do coitado, enquanto Tonica
passava café quente.
Lá pelas tantas observaram
que o lençol começou a se movimentar justamente na altura do dedão do pé
canhoto, o pé dos chutes potentes do time do Liberdade. Foi um Deus nos acuda.
Saiu gente pela portinha da casa numa sofreguidão desesperada. Alguns até pularam
a janela onde ele tinha morrido.
Nessas ocasiões, há sempre
um mais corajoso, que resolveu voltar à sala, para verificar o que de fato
estaria ocorrendo. Levantou, devagarinho e um tanto desconfiado, o lençol do
dedão do pé do Isaias e lá estava um besouro de chifre prestando suas últimas
homenagens ao ponta-esquerda do time local.
Dias depois da inumação do
corpo, enterrado em cova rasa, fez-se a necropsia, que constatou que Isaías
morrera de embolia pulmonar. Tonica estava inocente no caso.
Mas Isaías estava
definitivamente fora do time dos vivos!
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Imagem em ra-bugio.org.br. |
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Esta história me foi contada pelos amigos Jane e José Luiz Padilha. Eu já não
morava mais na vila, quando ocorreu.
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