8 de abril de 2014

ESSA NOSSA RICA LÍNGUA II - A PERMANÊNCIA DE UMA METÁFORA

A tradição literária da língua portuguesa remonta aos fins do século XII, período em que está atestado o mais antigo texto escrito:  a Cantiga da Ribeirinha, poema de autoria de Paio Soares de Taveirós. A língua da época não era simplesmente o português, mas o chamado galaico-português (ou galego-português), evolução natural do latim vulgar falado no oeste da Península Ibérica, que recebeu as influências de substrato da língua celta da região.
Com o passar o tempo, galego e português foram-se desenvolvendo de forma autônoma, sobretudo em virtude da criação do Condado Portucalense, por D. Afonso Henriques, o D. Afonso I, fundador do que hoje conhecemos como Portugal.
Ao longo de sua história, nossa língua também recebeu, dentre outras, contribuições do árabe, com o qual conviveu por séculos, durante a ocupação da Península, de línguas negras africanas em função do contato com diversos povos para cá trazidos como escravos, bem como do tupi, sobretudo, entre as línguas indígenas faladas no território brasileiro.
O jeito brasileiro de falar é mais próximo à forma como Cabral e seus marinheiros falavam quando aqui chegaram, do que o atual sotaque de Portugal, que começou a se acentuar a partir de Lisboa na segunda metade do século XIX.
O que interessa aqui, no entanto, é a permanência de certos símbolos literários – metáforas – que se comprovam em textos arcaicos e modernos.
Um desses casos, que me parece bastante interessante, é a semelhança temática entre as cantigas medievais de Pero Meogo, jogral português do século XIII, possivelmente contemporâneo do grande rei-poeta D. Dinis, e, particularmente, a música de Vital Farias Sete cantigas para voar, do seu disco Sagas Brasileiras, de 1982, que também foi posteriormente gravada por Elba Ramalho, versão*, inclusive, mais executada nas rádios de então.
Numa das estrofes da composição de Vital Farias, está assim expressa a desculpa da moça que vai à fonte para encontrar o amado:
Cantiga de ninar 
a criança na rede 
mentira de água 
é matar a sede: 
diz pra mãe que eu fui pro açude 
fui pescar um peixe 
isso eu num fui não 
tava era com um namorado 
pra alegria e festa 
do meu coração 
Voa, voa azulão 
Voa, voa azulão
Deve-se dizer que foram preservadas nove cantigas** de Pero Meogo, que constituem uma narrativa em versos, a respeito da iniciação amorosa de uma jovem no século XIII. Nelas, mãe e filha conversam sobre o acontecido: o encontro às escondidas da filha com o amado e as inquirições da mãe acerca do seu comportamento. Na nona e última cantiga, estabelece-se um diálogo em que a mãe desconfia da demora da filha na fonte, ao que ela se justifica dizendo ter ido lavar os cabelos, mas as águas estavam turvas pela presença de cervos, por isso a demora. A mãe não crê na desculpa. Veja o texto da cantiga em galego-português.
- Digades, filha, mia filha velida:
porque tardastes na fontana fria?
            - Os amores ei.

Digades, filha, mia filha louçana:
porque tardastes na fria fontana?
           - Os amores ei.

- Tardei, mia madre, na fontana fria,
cervos do monte a augua volvian:
           - Os amores ei.

Tardei, mia madre, na fria fontana,
cervos do monte volvian a augua:
           - Os amores ei.

-Mentir, mia filha, mentir por amigo;
nunca vi cervo que volvess' o rio:
           - Os amores ei.

Mentir, mia filha, mentir por amado;
Nunca vi cervo que volvess’o alto:
           - Os amores ei

(Possível atualização textual: - Diga-me, filha, minha filha querida, / por que tardastes na fonte fria? / - Estou apaixonada. /Diga-me, filha, minha filha bonita, / por que tardaste na fria fonte? / - Estou apaixonada. / - Tardei, minha mãe, na fonte fria, / cervos do monte a água volviam. / - Estou apaixonada. / - Tardei, minha mãe, na fria fonte, / cervos do monte volviam a água. / - Estou apaixonada. / - Mentir, minha filha, mentir por namorado, / nunca vi cervo que volvesse o rio / - Estou apaixonada. / Mentir, minha filha, mentir por amado, / nunca vi cervo que volvesse a água. / - Estou apaixonada.)

Nesta cantiga de amigo paralelística, a fala da mãe está presente nas duas primeiras estrofes, cujo teor se repete por formas diferentes. A mãe indaga sobre a demora da filha na fonte. A terceira e a quarta estrofes representam a resposta da filha à mãe, ao justificar a demora pela presença de cervos que turvavam as águas onde iria lavar os cabelos. Nas duas últimas estrofes, volta a fala da mãe, que sabe ser a desculpa da filha uma mentira. O refrão (Os amores ei) funciona como o coro que representa a voz interior da moça, ao reconhecer o verdadeiro motivo da demora: ela foi encontrar o namorado, porque estava apaixonada.
Na canção de Vital Farias, a moça pede que se diga à mãe uma mentira, que ela mesma assume: “diz à mãe que eu fui pro açude / fui pescar um peixe / isso eu não fui não / tava era com o namorado /pra alegria e festa / do meu coração”. Observe que o traço moderno da canção da canção de Vital Farias talvez esteja no fato de que a moça assume a mentira, sem titubear, enquanto na canção medieval ela tenta escamotear a verdade para a mãe.
De qualquer forma, constata-se aí uma metáfora que ultrapassa os séculos: a fonte, o açude, como espaço para o encontro amoroso.

Esse fato representa tanto a permanência de tal metáfora, quanto evidencia o elo entre a cultura medieval e a cultura atual, sem um processo de ruptura. Isso significa constatar que somos muito mais antigos do que pensamos. E o que, às vezes, imaginamos ser muito moderno pode estar com um pé fincado há séculos e séculos. E, no caso do Brasil, o Nordeste é um repositório repleto dessas permanências.

Symphonia da Cantiga 160, Cantigas de Santa Maria de Afonso X, o Sábio - Códice do Escorial. (1221-1284). Imagem em pt.wikipedia.org.

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