A
tradição literária da língua portuguesa remonta aos fins do século XII, período
em que está atestado o mais antigo texto escrito: a Cantiga da Ribeirinha, poema de
autoria de Paio Soares de Taveirós. A língua da época não era simplesmente o
português, mas o chamado galaico-português (ou galego-português), evolução
natural do latim vulgar falado no oeste da Península Ibérica, que recebeu as
influências de substrato da língua celta da região.
Com o passar o
tempo, galego e português foram-se desenvolvendo de forma autônoma, sobretudo
em virtude da criação do Condado Portucalense, por D. Afonso Henriques, o D.
Afonso I, fundador do que hoje conhecemos como Portugal.
Ao longo de sua
história, nossa língua também recebeu, dentre outras, contribuições do
árabe, com o qual conviveu por séculos, durante a ocupação da Península, de
línguas negras africanas em função do contato com diversos povos para cá
trazidos como escravos, bem como do tupi, sobretudo, entre as línguas indígenas
faladas no território brasileiro.
O jeito brasileiro
de falar é mais próximo à forma como Cabral e seus marinheiros falavam quando
aqui chegaram, do que o atual sotaque de Portugal, que começou a se acentuar a
partir de Lisboa na segunda metade do século XIX.
O que interessa
aqui, no entanto, é a permanência de certos símbolos literários – metáforas –
que se comprovam em textos arcaicos e modernos.
Um
desses casos, que me parece bastante interessante, é a semelhança temática entre
as cantigas medievais de Pero Meogo, jogral português do século XIII,
possivelmente contemporâneo do grande rei-poeta D. Dinis, e, particularmente, a
música de Vital Farias Sete cantigas para voar, do seu disco Sagas Brasileiras, de 1982, que
também foi posteriormente gravada por Elba Ramalho, versão*, inclusive, mais
executada nas rádios de então.
Numa
das estrofes da composição de Vital Farias, está assim expressa a desculpa da
moça que vai à fonte para encontrar o amado:
Cantiga de ninar
a criança na rede
mentira de água
é matar a sede:
diz pra mãe que eu fui pro açude
fui pescar um peixe
isso eu num fui não
tava era com um namorado
pra alegria e festa
do meu coração
Voa, voa azulão
Voa, voa azulão
a criança na rede
mentira de água
é matar a sede:
diz pra mãe que eu fui pro açude
fui pescar um peixe
isso eu num fui não
tava era com um namorado
pra alegria e festa
do meu coração
Voa, voa azulão
Voa, voa azulão
Deve-se dizer que foram
preservadas nove cantigas** de Pero Meogo, que constituem uma narrativa em
versos, a respeito da iniciação amorosa de uma jovem no século XIII. Nelas, mãe
e filha conversam sobre o acontecido: o encontro às escondidas da filha com o
amado e as inquirições da mãe acerca do seu comportamento. Na nona e última
cantiga, estabelece-se um diálogo em que a mãe desconfia da demora da filha na
fonte, ao que ela se justifica dizendo ter ido lavar os cabelos, mas as águas
estavam turvas pela presença de cervos, por isso a demora. A mãe não crê na
desculpa. Veja o texto da cantiga em galego-português.
-
Digades, filha, mia filha velida:
porque
tardastes na fontana fria?
- Os amores ei.
Digades,
filha, mia filha louçana:
porque
tardastes na fria fontana?
- Os amores ei.
-
Tardei, mia madre, na fontana fria,
cervos
do monte a augua volvian:
- Os amores ei.
Tardei,
mia madre, na fria fontana,
cervos
do monte volvian a augua:
- Os amores ei.
-Mentir,
mia filha, mentir por amigo;
nunca
vi cervo que volvess' o rio:
- Os amores ei.
Mentir,
mia filha, mentir por amado;
Nunca
vi cervo que volvess’o alto:
- Os amores ei
(Possível atualização textual: - Diga-me,
filha, minha filha querida, / por que tardastes na fonte fria? / - Estou apaixonada.
/Diga-me, filha, minha filha bonita, / por que tardaste na fria fonte? / -
Estou apaixonada. / - Tardei, minha mãe, na fonte fria, / cervos do monte a
água volviam. / - Estou apaixonada. / - Tardei, minha mãe, na fria fonte, /
cervos do monte volviam a água. / - Estou apaixonada. / - Mentir, minha filha,
mentir por namorado, / nunca vi cervo que volvesse o rio / - Estou apaixonada. /
Mentir, minha filha, mentir por amado, / nunca vi cervo que volvesse a água. /
- Estou apaixonada.)
Nesta cantiga de amigo
paralelística, a fala da mãe está presente nas duas primeiras estrofes, cujo
teor se repete por formas diferentes. A mãe indaga sobre a demora da filha na
fonte. A terceira e a quarta estrofes representam a resposta da filha à mãe, ao
justificar a demora pela presença de cervos que turvavam as águas onde iria
lavar os cabelos. Nas duas últimas estrofes, volta a fala da mãe, que sabe ser
a desculpa da filha uma mentira. O refrão (Os amores ei) funciona como o coro que representa a voz
interior da moça, ao reconhecer o verdadeiro motivo da demora: ela foi
encontrar o namorado, porque estava apaixonada.
Na canção de Vital Farias, a moça pede que
se diga à mãe uma mentira, que ela mesma assume: “diz à mãe que eu fui pro
açude / fui pescar um peixe / isso eu não fui não / tava era com o
namorado /pra alegria e festa / do meu coração”. Observe que o traço moderno da
canção da canção de Vital Farias talvez esteja no fato de que a moça assume a
mentira, sem titubear, enquanto na canção medieval ela tenta escamotear a
verdade para a mãe.
De qualquer forma, constata-se aí uma
metáfora que ultrapassa os séculos: a fonte, o açude, como espaço para o
encontro amoroso.
Esse fato representa tanto a permanência de
tal metáfora, quanto evidencia o elo entre a cultura medieval e a cultura
atual, sem um processo de ruptura. Isso significa constatar que somos
muito mais antigos do que pensamos. E o que, às vezes, imaginamos ser muito
moderno pode estar com um pé fincado há séculos e séculos. E, no caso do
Brasil, o Nordeste é um repositório repleto dessas permanências.
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Symphonia da Cantiga 160, Cantigas de Santa
Maria de Afonso X, o Sábio - Códice do
Escorial. (1221-1284). Imagem em pt.wikipedia.org.
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Muito bom, uma bela aula de História.
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