18 de março de 2014

FUI AMIGO DE UM DZI CROQUETTE



Estivemos no último sábado em Miracema, para o sepultamento do nosso amigo Rogério de Poly. Rogério foi, dito assim simplesmente, um dos mais destacados Dzi Croquettes, a trupe de bailarinos-atores que nos idos de 70 subverteu a cena carioca de teatro, com um espetáculo inusitado, inventivo, irreverente, provocativo, transgressor e, por que não dizer, tendo em vista a época, subversivo. E Rogério se destacava do grupo visualmente por seu porte de corpo e seu rosto bonitos, seus longos cabelos.

Depois que os Dzi Croquettes ganharam o público brasileiro, eles foram aventurar-se na Europa, sobretudo na França, onde Rogério acabou ficando como vários deles, inclusive seu irmão Reginaldo, também membro do elenco.

Conheci Rogério por ocasião de uma das apresentações do grupo no Rio de Janeiro, no início dos 70. Minha mulher já era amiga dos irmãos em Miracema, onde nasceram. Depois do espetáculo, saímos para comemorar o reencontro e o sucesso estrondoso que faziam, a despeito de todo o cuidado e da obliteração da censura da ditadura militar.

Passaram-se os anos até que Jane e eu fomos pela primeira vez a Paris. Lá fomos recebidos por Rogério que, morador da cidade há duas décadas, nos serviu como um anfitrião luxuoso, nos levando a conhecer a cidade como os seus habitantes a conhecem, além de alguns pontos de interesse que tínhamos solicitado a ele. Lembro-me, por exemplo, que nos disse que não voltaria pela enésima vez ao Louvre, porque, se encontrasse a Mona Lisa novamente, daria uns tapas na cara dela, de tão cheio da Gioconda. Rimos muito.

Embora já adaptado à cidade, onde chegou sem dizer uma só palavra da língua de Robespierre, confessou-nos que tinha horror à comida francesa cheia de manteiga e creme de leite. E nos levou para almoçar num restaurante japonês próximo à igreja de São Pedro e São Paulo, no Marais, bairro em que havia morado. Fomos também conhecer seu antigo endereço, na Rue des Rosiers, em cuja caixinha de correios ainda estava anotado seu nome. No périplo por esse tradicional bairro de Paris, conhecemos a loja de chás Mariage Frères de propriedade de um amigo dele, onde compramos alguns chás, a bela catedral Batista e uma loja de roupas para gays de outro amigo. Aliás, o Marais era tido como o bairro gay de Paris.

Noutro dia, indo em direção à igreja da Medalha Milagrosa – pedido de Jane a ele – atravessou a rua na faixa de pedestre tão logo chegamos à calçada. Jane e eu ficamos aguardando um carro que vinha a uns cinquenta metros, ao que ele disse:

- Podem atravessar: motorista francês não é louco de atropelar vocês sobre a faixa.

Jane, esperta e desconfiada, moradora de Niterói, lhe disse:

- E se for um brasileiro que alugou o carro a dirigir?

E foi outra sessão de risos. Era melhor prevenir.

Noutro dia, fomos até o cemitério de Montparnasse, onde está sepultado seu irmão Reginaldo, assassinado brutalmente na capital francesa. Jane queria ver o túmulo do seu amigo de infância. Rogério, já conhecido do porteiro do cemitério, repetiu o ritual em honra de seu irmão: limpou o túmulo; varreu no entorno; levou flores, joias, fotos; levou o gravador com músicas de que ele gostava e, ao final dos cuidados, fez uma prece para o irmão. O túmulo do Reginaldo fica próximo ao de Baudelaire, talvez não sem alguma motivação: ambos em suas épocas chocaram a sociedade com uma postura transgressora.

Um pouco antes de voltarmos ao Brasil, ele nos ofereceu um jantar frio – não havia fogão no pequeno espaço onde morava – cheio de paladares, acompanhado por vinho branco nacional. Armou a mesa na pequena sacada e nos sentamos para comer. O ar da noite estava suave, o papo corria descontraído e alegre. Daí a pouco, percebi, de fundo, o barulho de água corrente e trilos de pássaros. Perguntei de onde vinha tal barulho, e ele me mostrou no portal, atrás de mim, um pequeno gravador dependurado, que reproduzia os sons dos ribeirões e dos pássaros de Miracema, que ele gravara em uma de suas idas à cidade natal, a fim de que matasse um pouco da saudade e reforçasse suas raízes.

- Ainda volto para lá, compro um sítio e vou viver tranquilo.


Rogério e Jane, durante o jantar na casa dele.

Jane e eu durante o jantar (foto feita pelo Rogério).

Uma das confissões que me fez, supondo que não o conhecesse tão bem quanto a Jane, foi característica de sua personalidade:

- Saint-Clair, sou como um velho elepê: às vezes sou lado A, às vezes sou lado B. Dependendo da fase, gosto de meninos e de meninas.

No ano seguinte, meu filho Pedro e eu fomos ver a Copa do Mundo da França e, mais uma vez, encontramos Rogério, para quem levávamos encomendas. Ele estava no afã de decorar um barco no Rio Sena, que serviria de bar e restaurante durante o evento, com espetáculos musicais e de dança de que participaria.

Numa das vezes em que veio a Miracema pelas festas de fim de ano, contou-me que tinha trazido uma garrafa de armagnac e nos convidou para um trago. Disse-lhe que gostava muito da bebida, e ele, com seu costumeiro sorriso debochado, me disse:

- Você sabe apreciar as coisas boas!

Anos depois, após ter sofrido um atropelamento por um ônibus urbano enquanto pedalava pelas ruas parisienses, Rogério foi trazido por seu irmão mais novo, Ronaldo, para Miracema, a fim de que tivesse os cuidados necessários de sua família. Sua fase de glamour e transgressões havia passado, e aquele belo homem andrógino, que agradava tanto a homens quanto a mulheres, tinha perdido seu brilho, em função da saúde abalada por alguns maus físicos e psíquicos. Sempre que íamos a Miracema, continuamos a encontrá-lo, a levar para ele lembranças em forma de guloseimas diet, de que tanto gostava. Não tanto pelo paladar, mas, sobretudo, gostava da atenção que a Jane lhe dedicava.

Sábado último, às seis horas da manhã, depois de uma semana internado, nosso amigo Rogério de Poly, bailarino, ator, professor de dança, miracemense e transgressor assumido, faleceu como acontece a qualquer ser humano. Mas deixa gravada na história das artes cênicas do Brasil um papel que dificilmente será apagado, não importa o tempo que o calendário debulhar, nem o sussurro dolorido das águas dos ribeirões de sua terra natal.

Descanse em paz, Rogério!

Jane e Rogério na Igreja da Medalha Milagrosa, em Paris, em 1997.

17 comentários:

  1. Saint-Clair,
    fico emocionada com sua homenagem ao Rogério, pelo carinho e leveza de suas palavras de reconhecimento e admiração. Obrigada!
    Tânia Leitão

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  2. Bela homenagem num belo,leve e comovente depoimento! Gracias. Nilton Fernando

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  3. Tania Pamplona 01 de abril de 2014 08:59

    Saint-Clair,
    emocionada pela homenagem in memoriam do amigo e pela suavidade
    e beleza do texto, depoimentos e encontros. E despedida! Sinceros pêsa_
    mês.
    Tania.

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  4. Que depoimento meravilhoso! Sou fã demais deles. São talentos únicos no mundo.

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  5. Amigo Saint-Clair, 4 anos se passaram e a saudade só aumenta. Eu não havia lido a sua linda homenagem ao nosso Rogério. Só tenho agradecer. Que Deus abençoe.
    Ronaldo Poly

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  6. ola, entre ontem e hoje descobri este lindo trabalho dos DZI que estou a amar. Fiquei curiosa e estou a ver o documentário lindo sobre eles*
    Fiquei curiosa, por acaso sabe o dia de aniversario de lennie dale?

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    1. Cara Inês, só consegui apurar na Wikipedia o ano do nascimento: 1934. Há um filme documentário sobre eles, "Dzi Croquetes" (2009), dirigido por Tatiana Issa, filha de um deles, e Raphael Alvareza

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  7. E muito bom ficar sabendo dessas estórias e principalmente que existem amigos admiradores das coisas bonitas que vivemos

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  8. E muito bom ficar sabendo dessas estórias e principalmente que existem amigos admiradores das coisas bonitas que vivemos

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  9. Conheci os Poly, em Zurich, no final dos anos 1970. A primeira vez que fui a Paris, a viagem foi denominada pelo Rogério de Rebordosa. 3 dias, nem te conto detalhes.

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