Senti que
minha bengala havia tocado numa pessoa e pedi desculpas. Mas não adiantou. Uma
voz de moça na flor da idade, como dizíamos nos meus bons tempos, soou ríspida:
- Você não
se enxerga, não, seu velho?
Pelo toque
da bengala, senti que era uma moça bem fornida em carnes. Devo ter tocado seu
bumbum malhado – deu para sentir. Pela voz, também pude formar, no meu cérebro,
uma figura bonita, como há muito deixei de ver. Era uma voz resoluta, firme,
mas com timbre de menina ainda mal saída da puberdade.
- De fato,
não me enxergo, senhorita: sou cego. Queira me perdoar. - disse-lhe com o jeito mais macio possível, a
fim de que ela não se exasperasse ainda mais.
Era carnaval
e, por consequência, aqui na cidade, muitas coisas são permitidas, sem que
provoquem reações violentas. Eu apenas queria atravessar a Avenida por onde –
ouvia – desfilavam blocos de sujo, coisas assim um tanto desorganizadas,
caóticas, pelo que se percebia do canto e da batida dos tambores. Talvez ela
estivesse passando justo no momento em que levantei a bengala para encontrar o
caminho entre os que se aglomeravam à beira da calçada.
- Mil
perdões, senhor, não percebi que não enxergava. É que há muitos engraçadinhos
no carnaval, e o senhor deve saber como são: querem se aproveitar de tudo.
E pegou na
minha mão para me ajudar a atravessar para o outro lado. Sua mão estava úmida
de suor e quente, naturalmente produto da folia que desfrutava, e tinha um
toque sedoso. Ela se aproximou um pouco mais de mim e pude sentir também a
quentura que exalava do seu corpo. Misturado ao suor, um cheiro doce de
perfume. Eu sou cego, mas não sou insensível. Perguntei-lhe se ela estava
desfilando, ao que me respondeu afirmativamente. Então não precisa me ajudar,
disse-lhe. Pode ir brincar seu carnaval, que sigo em frente. Já sou cego há
muitos anos e me habituei a andar pelas ruas cheias de gente. Estou indo para a
Cinelândia, para o show de marchinhas. São músicas do meu tempo. Ela, então,
quis saber se eu gostava de carnaval. Sempre gostei, respondi, e entabulamos
uma conversa agradável, durante o trajeto – ela me segurando pela mão, porquanto
eu havia aposentado a bengala sob meu braço direito. Quis saber se a avenida
estava bonita, bem ornamentada, e ela reclamou do descaso da prefeitura nos
últimos anos, de que não enfeitava a rua com uma decoração de bom gosto. Tudo
parecia feito de refugo e às pressas, mas a alegria continuava a mesma, segundo
ela. O carnaval acontecerá a despeito de tudo, afirmou sorrindo.
Quando nos
aproximamos do Teatro Municipal, ela me perguntou em que lugar eu pretendia
ficar. Pedi-lhe que me deixasse sobre o calçadão da Praça Floriano, em algum
espaço menos cheio de pessoas. Alguns passos mais adiante, ela me disse que ali
estava bom, que era possível ouvir muito bem, sem que o som incomodasse. E quis
saber mesmo se eu estava bem, se ela poderia ir embora, continuar a
brincadeira. Respondi-lhe que sim, que estava tudo muito bem, que meu carnaval
havia sido maravilhoso pelo encontro acidental com ela, pois me havia feito
recuar no tempo em que também por ali saía, fantasiado de Arlequim, cantando Mamãe eu quero. Percebi que ela sorriu,
pelo hálito de cerveja que lhe saía da boca. Então ela perguntou se me podia
beijar no rosto. Eu disse que sim, que ficaria muito feliz com seu gesto. Ela
me beijou calorosa e terna. Uma comichão percorreu meu corpo de alto a
baixo, e ela se despediu jovial e alegre, como são as meninas-moças do Rio de
Janeiro.
- Tchau!
Nem bem
saíra, senti que ela se voltou, para perguntar:
- Desculpe,
qual é o seu nome?
- Felicidade!
– respondi com um sorriso – E o seu? – indaguei em seguida.
Ela disse
não acreditar, já a alguns passos adiante. E falou seu nome. Não mais a ouvi. O
som da marchinha cantada por uma das antigas cantoras do rádio encobriu sua fala
e sua risada gostosa.
Eu fiquei só
por ali, com minha bengala e, como disse Drummond, com o sentimento do mundo. O
meu carnaval estava iluminado!
![]() |
Pablo Picasso, Paul vestido de Arlequim (em triplov.com). |
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