Perci começou
a ciscar fora do casamento, sem que ninguém em casa se desse conta.
A história
havia começado há alguns meses com uma antiga aluna das aulas de educação
física, uma morena de porte esbelto, longos cabelos encaracolados, olhos de
ressaca que lembravam Capitu.
Foi uma
coisa assim mais ou menos irresistível. Ele já entrado em anos, como se dizia;
ela, na flor da idade.
Procurou, de
todas as formas, dissimular as escapadelas para se encontrar com a morena.
Mulher e filhas nem poderiam suspeitar que Perci andasse pulando a cerca
matrimonial.
Mas, como
dizia o estadista norte-americano, não se consegue enganar todos por muito
tempo e a traição acabou na boca do povinho miúdo das fofocas e dos
disse-me-disse. Daí para o ouvido de Anja, a esposa, foi um lance de escada.
Em casa, o
tempo virou, com raios e trovões, Perci não conseguindo mais esconder nada,
porque os detalhes falavam por si. Encostado à parede pela mulher e as filhas,
chorou, arrependeu-se e prometeu emendar-se, tomar tenência, dedicar-se mais à
família. A mulher até lembrou-lhe a falta de religião, que naturalmente
contribuíra para aquele passo em falso. Ameaçou, inclusive, ir ter dois dedos
de prosa com a zinha, para botar tudo em pratos limpos, coisa que Perci
descartou de pronto, tomasse juízo a Anja e não fosse se rebaixar,
arriscando-se a um confronto, que ele não queria ver nem no final dos tempos.
As filhas aconselharam a mãe a não tomar tal atitude, para não armar barraco,
que talvez fosse mais vantajoso para a zinha do que para ela, uma mulher de
respeito, mãe de família, etc. e tal. Anja acatou a ponderação das filhas,
mas exigiu nova postura do marido daí em diante.
Perci,
envergonhado por ser pego com a boca na botija, passou a chegar mais cedo a
casa, a jantar com a família, agora mais que unida. Ponderou com a mulher que a
falta de religião pudesse, realmente, ser a falta de freio de sua vida e
disse que estava procurando um caminho, lendo umas coisas, assuntando
informações.
Duas semanas
depois, a família reunida em volta da mesa, Perci comunicou que, pesadas e
medidas todas as pesquisas, se decidira por entrar para o espiritismo de
caxambu e terreiro, porque se sentia atraído pela força dos ancestrais
africanos que presidiam a vida dos seus devotos. A mulher, por ser cristã,
estranhou muito a escolha, tentou argumentar, mas acabou concordando, pois
vislumbrava nessa nova postura uma regra de conduta. Toda religião, pensava
ela, tem por base primeira uma ética de conduta da vida do crente.
Perci
começou a frequentar o terreiro às sextas-feiras, passou a usar guias e roupas
brancas em determinadas situações. Falou mesmo com a mulher que estava pensando
em fazer cabeça na Bahia, num terreiro afamado, que exigia cerca de quinze dias
de reclusão.
Anja, a
princípio, se opôs a isso, julgando ser precipitada a decisão do marido. Ele,
no entanto, explicou-lhe que era exigência do santo de cabeça. Foi, então, para
a Bahia de todos os santos, onde ficou por cerca de vinte dias. Notícias só ao
chegar e ao sair. No interregno, estava em obrigação no roncó, incomunicável
com gente externa.
A dedicação
de Perci, assim que voltou da cerimônia, passou a ser quase monástica, com
perdão da má palavra no caso. Até que um dia comunicou à família que deveria
permanecer no terreiro da tarde de sexta-feira até o meio-dia do sábado, pois
se tornara ajudante da mãe de santo, a velha ialorixá Incisse, sua guia
espiritual desde a chegada ao centro.
Foi levando
a vida assim, a mulher e as filhas conformadas com a orientação religiosa do
pai, a cada dia mais devotado às obrigações.
Numa dessas
sextas-feiras, aconteceu de Perci ter um desconforto físico e ser levado às
pressas para o hospital São Vicente de Paulo. Era um infarto do miocárdio de
grau mediano, que o fez permanecer na UTI por uns dias.
A família,
imediatamente avisada do problema, correu ao hospital. Lá foi informada da
gravidade da situação, dos procedimentos adotados e das providências a se
tomarem. Foi dito à esposa que ele fora levado ao hospital por um taxista, e lá
deixado para atendimento. Anja procurou, então, nos pertences do marido que o
hospital lhe entregara o telefone da mãe de santo, para saber detalhes do que
ocorrera, se a incorporação o fizera beber muita pinga e coisas que tal. Para
sua surpresa, a mãe de santo outra não era senão a tal morena de olhos de
Capitu, a mesma zinha com quem ele tivera o caso, nunca jamais encerrado em
tempo algum, e com a qual fora, inclusive, passar uma temporada na Costa do
Sauípe. E o terreiro a exigir sua presença era o corpo morno dela.
Sem alarde,
sem escândalos, chamou as filhas e comunicou tudo o que descobrira. Decidida,
procurou advogado, que providenciou a petição de divórcio, com todas as
formalidades legais atendidas.
No hospital,
informou-se com os médicos a data da alta e, à saída do farsante, ainda no
saguão de entrada, estendeu-lhe a petição para que também a assinasse, a zinha
ao lado dele, já que estavam todas as cartas postas na mesa. Ainda atordoado
pela pancada recebida, assinou a papelada, sem tempo de pedir perdão, sem tempo
de se explicar novamente.
Uma das
filhas, com a mágoa que só as filhas podem ter de um pai traidor, virou-se para
a zinha e lhe disse com todos os efes e erres:
- Cuide bem
do meu pai, mas não aceitamos devolução.
![]() |
Carolus Duran, O convalescente, Museu D'Orsay (em ilgiornaledellarte.com) |
Nenhum comentário:
Postar um comentário